sábado, 24 de junho de 2017

Ivan Junqueira, "O náufrago"


Na curva suave da tarde,
entre as algas e os sargaços,
que ungem a crista das vagas,
um homem, errático, arfa
e nada em busca da praia
a que não chegam seus braços.
Sem bússula ou carta náutica,
leme, sextante, astrolábio,
nada em direção ao nada,
ao que restou de sua alma
que um dia vendeu ao diabo,
como na lenda de Fausto,
em troca da glória fátua
e um grão de imortalidade.
Enquanto nada e se exaure,
toda a vida que levara
vai refluindo, aos pedaços,
como um filme enevoado
que na tela projetasse
as imagens ao contrário.
Mas o que informa o relato,
sem legendas que o aclarem,
é bem mais do que ele narra
em sua língua enrolada:
é a crônica de uma fraude
de quem rasgou o relato
e perdeu a identidade,
de quem, por julgar-se raro,
se esqueceu de que o vulgar
é também aristocrático,
na medida em que decarna
o rei até a carcaça
e o põe nu, e o equipara
ao mais humilde vassalo.
Na curva suave da tarde,
um homem nada. E naufraga.

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