domingo, 31 de julho de 2016

Pedro Paulo de Sena Madureira










"Nenhum poder me interessa..."

Nenhum poder me interessa.
Nenhuma imagem me sidera.

À severa pauta de palavras, sons
e imagens espelhadas em si mesmos,
prefiro o coração ridículo
sangrando em cima de um prato.

Mas então, por que ainda poeta
quando toda ambição cessa?
Se o coração aprendeu a chorar,
se não se envergonha de subir à flor da pele
e se arrepia quando o vento do outro sopra,
porque ainda o desejo de me contar?

Quem se incomoda com o que não sei
mas sinto?
Quem a meu lado se perturba
se estou ofegante no meio da noite
pois quem desejo não veio?
Quem se comove se digo
que no amor me ardo todo
e não me importa
o que seu abraço esconda
sob forma de coice?

Afinal, o que sei todos podem saber.
O que sinto, porém,
quem, se o sente,
não mente?

Nenhum poder me domina.
E isto que ora termina
não é propriamente um poema:
apenas um recado de quem,
sozinho na cama,
escreve porque ama.

sábado, 30 de julho de 2016

Luís Antonio Cajazeira Ramos, "O funeral das mágoas"


Amadurece, meu rapaz! Contempla
a tua sepultura. Não a vês?
Quando te fores (não é dessa vez
um sonho), que não seja de surpresa.

Tua cova é tão rasa... Avistas fácil-
mente o final de solidão dos séculos,
se séculos tivesses (que não tens
mais nada) a refletir no chão do túmulo.

A certeza da morte expõe a vida,
que te pesa e mal levas. Que mal levas,
se levaste a vida com leveza?

Não te leves a mal, a bem, a sério.
Vê só que leves e humoradas são
as mágoas a pesar teu coração.

quinta-feira, 28 de julho de 2016

Jorge Luís Borges, "Posse do ontem"


Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las, e que essas perdas, agora, são o que é meu. Sei que perdi o amarelo e o preto e penso nessas impossíveis cores como não pensam os que vêem. Meu pai morreu e está sempre ao meu lado. Quando quero escandir versos de Swinburne, eu os faço, dizem-me, com sua voz. Só o que morreu é nosso, só é nosso o que perdemos. Ílion se foi, mas Ílion perdura no hexâmetro que o pranteia. Israel se foi quando era uma antiga nostalgia. Todo poema, com o tempo, é uma elegia. São nossas as mulheres que nos deixaram, não mais sujeitos à véspera, que é angústia, e aos alarmes e terrores da esperança. Não há outros paraísos senão os paraísos perdidos.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

Alexei Bueno, "Fim"


Eis que o elefante morreu. Na aurora
Viram-no quieto, a língua de fora.

O circo agora parou na estrada.
Sem o elefante não somos nada!

Os astros choram. A lona inerme
Recobre o corpo do paquiderme.

Não se acha um outro. Nada mais resta
Para as cidades que esperam festa.

Não há saída. Não há futuro.
Ei-lo na estrada, espantoso e duro.

Na noite um bando que já não dorme
Está cavando um enorme buraco.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

domingo, 24 de julho de 2016

Ivo Barroso, "Regresso"


Eis-me de volta! É longe donde venho….
Venho dessa distância que separa
teu beijo quente e a gargalhada clara
do triste ricto que em meus lábios tenho. 

Regresso desse abismo que se chama
Ausência… Venho de regiões sombrias…
De um lustro secular de cinco dias,
que doido é o tempo de quem muito ama ! 

Regresso de um presídio onde cumpri,
dentre as penalidades – a mais alta:
Sentir na carne a dor da tua falta,
sem deixar nunca de pensar em ti. 

Retorno da saudade dolorida,
da contenção do meu desejo imenso;
e voltar, e sentir-te, é o mesmo – penso –
que, estando morto, retornar à vida. 

Perdoa, pois, a febre dos desejos;
perdoa se os meus beijos e os abraços
machucarem a carne de teus braços
e a tua boca se sangrar de beijos.

sábado, 23 de julho de 2016

Eugénio de Andrade, "De noite..."


De noite eram barcos, de manhã são aves:
entram cantando pela casa.
Juntos vão pelos dias como irmãos
gémeos, dependentes
uns dos outros como estrelas
da mesma constelação.
Cada viagem já foi voluptuosa
descoberta de emoções
de porto em porto; agora
é só o gosto inteligente
de regressar à pequena praça
de muros caiados, à casa
onde o corpo se reconheceu noutro corpo,
fiéis a esta luz, este mar.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

David Mourão-Ferreira, "Ternura"


Desvio dos teus ombros o lençol 
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada... 

Olho a roupa no chão: que tempestade!
há restos de ternura pelo meio, 
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente 
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós! 


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Leis estranhas em Indiana (EUA)


-- Qualquer pessoa com mais de 14 anos, que xingar profanamente ou amaldiçoar Deus, Jesus Cristo ou o Espírito Santo, será multado em US$ 3 por cada ofensa, com uma multa máxima de US$ 10 por dia.
-- Todos os homens, de 18 a 50 anos, devem trabalhar pelo menos seis dias por ano em vias públicas.
-- Garçonetes não podem carregar drinques em restaurante ou bar.
-- O valor do símbolo matemático PI (Π) é 3 (no resto do mundo, 3,14159265359).
-- É ilegal para o homem ficar sexualmente excitado em público.
-- Ninguém pode pegar um peixe com as próprias mãos.
-- Um homem, com mais de 18 anos, pode ser preso por estupro se a passageira em seu carro tiver menos de 17 anos e estiver sem meias e sapatos.
-- É contra a lei ultrapassar um cavalo na rua.
-- O cliente não pode carregar um coquetel do balcão do bar para a mesa. Cliente que bebe na garrafa pode ser preso. É obrigatório colocar o drinque em um copo. Drinques por conta da casa são ilegais.
-- Loja que vende bebidas alcoólicas não pode vender refrigerantes gelados. Também não podem vender leite. Mercearias não podem vender bebidas alcoólicas geladas.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Antero de Quental














"Palavras dum certo morto"

Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo, à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto...

Só o espírito vive: vela absorto
N'um fixo, inexorável pensamento:
«Morto, enterrado em vida!» o meu tormento
É isto só... do resto não me importo...

Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia,
Um dia só — no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me.

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém! — logo em seguida
Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!

domingo, 17 de julho de 2016

Aramis Ribeiro Costa, "Soneto do sol de madrugada"



É noite - como as noites são vazias
E faz silêncio à volta, em toda a estrada
As mãos já não procuram, são tão frias
É noite - e nem sinal de uma alvorada.

Há cruzes espalhadas - tão sombrias!
Há um desejo morto na calçada
As esperanças passam, fugidias
Parece que adiante não há nada.

E de repente o fim que se procura
Após a longa e triste caminhada
E finalmente a luz na noite escura

O sol brilhando em plena madrugada
O desejo de ser - sem ser loucura
A vida, num segundo, iluminada.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

Jorge de Sena, "As evidências"


Desta vergonha de existir ouvindo,
Amordaçado, as vãs palavras belas,
Por repetidas quanto mais traindo
Tornadas vácuas da beleza delas;

Desta vergonha de viver mentindo
Só porque escuto o que dizeis com elas;
Desta vergonha de assistir medindo
Por elas as injúrias por trás delas

Ao mesmo sangue com que foram feitas,
Ao suor e ao sémen por que são eleitas
E à simples morte de chegar-se ao fim;

Desta vergonha inominável grito
A própria vida com que às coisas fito:
Calai-vos, ímpios, que jurais por mim!

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Sophia de Mello Breyner Andresen,"Marinheiro sem mar"


Longe o marinheiro tem
Uma serena praia de mãos puras
Mas perdido caminha nas obscuras
Ruas da cidade sem piedade

Todas as cidades são navios
Carregados de cães uivando à lua
Carregados de anões e mortos frios

E ele vai baloiçando como um mastro
Aos seus ombros apoiam-se as esquinas
Vai sem aves nem ondas repentinas
Somente sombras nadam no seu rastro.

Nas confusas redes de seu pensamento
Prendem-se obscuras medusas
Morta cai a noite com o vento

E sobe por escadas escondidas
E vira por ruas sem nome
Pela própria escuridão conduzido
Com pupilas transparentes e de vidro

Vai nos contínuos corredores
Onde os polvos da sombra o estrangulam
E as luzes como peixes voadores
O alucinam.

Porque ele tem um navio mas sem mastros
Porque o mar secou
Porque o destino apagou
O seu nome dos astros
Porque o seu caminho foi perdido
O seu triunfo vendido
E ele tem as mãos pesadas de desastres

E é em vão que ele se ergue entre os sinais
Buscando pela luz da madrugada pura
Chamando pelo vento que há no cais

Nenhum navio lavará o nojo do seu rosto
As imagens são eternas e precisas
Em vão chamará pelo vento
Que a direito corre pelas praias lisas

Ele morrerá sem mar e sem navios
Sem rumo distante e sem mastros esguios
Morrerá entre paredes cinzentas
Pedaços de braços e restos de cabeças
Boiarão na penumbra das madrugadas lentas

E ao Norte e ao Sul
Ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Sacodem as suas crinas

E o espírito do mar pergunta:

"— Que é feito daquele
Para quem eu guardava um reino puro
De espaço e de vazios
De ondas brancas e fundas
e de verde vazio?"

Ele não dormirá na areia lisa
Entre medusas, conchas e corais

Ele dormirá na podridão
E ao Norte e ao Sul
E ao Leste e ao Poente
Os quatro cavalos do vento
Exactos e transparentes
O esquecerão

Porque ele se perdeu do que era eterno
E separou o seu corpo da unidade
E se entregou ao tempo dividido
Das ruas sem piedade. 

terça-feira, 12 de julho de 2016

Nelson Freire, "Consolação nº 3, de Franz Liszt"

Al Berto, "Diários"














terça - 16 ab.91 / Sines.


Já não tenho um corpo para te oferecer. Tenho outra coisa que ainda não aprendi a nomear. o corpo em que vivi está agora, intacto, no fundo desse lugar inacessível e ainda sem nome.

*

é um tempo de cinza, este que vivo sem ti. é um tempo nulo, este que atravessa os dias de espera. tempo de cardos no coração. tempo que se amachuca numa folha de papel escrita. nada, a não ser a respiração que acredito ser a minha.

*

o mundo desfaz-se, apressadamente.


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Maria Helena Nery Garcez, "Declaração de bens"


Tenho um pequeno rebanho de ovelhas negras 
que fazem miau. 

sábado, 9 de julho de 2016

Leis estranhas em Illinois (EUA)

Illinois

-- Qualquer pessoa pode ser presa por vagabundagem se não tiver, consigo, pelo menos um dólar.
-- Dar um charuto aceso a um bicho de estimação é ilegal.
-- Criminosos sexuais são proibidos de distribuir balas e chocolates no Halloween e na Páscoa e de personificar o Papai Noel no Natal, exceto sob circunstâncias específicas.
-- Pessoas com menos de 21 anos podem beber legalmente, desde que estejam matriculados em um curso de culinária para fazer isso.
-- Em Chicago: É ilegal, para qualquer um, comer em um lugar que esteja pegando fogo. Também: É ilegal dar uísque a cachorro. Ainda: É ilegal beber cerveja em um balde, sentado no meio-fio.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Pedro Kilkerry














"Ritmo eterno"

Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Al Berto, "Diários"
















19 de junho 1985                        rua do forte

                         ao Rui Falcão


o poema// essa construção de ossos
e de pedra atravessada por incendiados corpos
cinzentos dias húmidos lentos
por onde apercebemos a minúscula fama
da nossa tristeza

terça-feira, 5 de julho de 2016

Manuel Maria Barbosa du Bocage, "Ó retrato da morte! Ó noite amiga ..."


Ó retrato da morte! Ó noite amiga
Por cuja escuridão suspiro há tanto!
Calada testemunha do meu pranto,
De meus desgostos secretária antiga!

Pois manda Amor, que a ti somente os diga,
Dá-lhes pio agasalho no teu manto;
Ouve-os, como costumas, ouve, enquanto
Dorme a cruel, que a delirar me obriga:

E vós, oh cortesãos da escuridade,
Fantasmas vagos, mochos piadores,
Inimigos, como eu, da claridade!

Em bandos acudi aos meus clamores;
Quero a vossa medonha sociedade,
Quero fartar meu coração de horrores. 

domingo, 3 de julho de 2016

Lúcio Cardoso, "Inverno"


Que branco vento
viaja do sul?
Amar tarda,
esquecer é breve.
Assim, morremos.

Mas uma estrela
nova e perfeita
a cada sempre
inaugura o céu.

sábado, 2 de julho de 2016

María Maizkurrena, "Pássaros"


Os pássaros que a cidade, nesta hora
deserta e fria habitam, grupos cinzentos
apenas de tremor, e, como tu, perdidos
sob a vasta cúpula, parecem tão frágeis,
como todas as coisas que contém vida.

E no entanto, nesta chuva e nesta indecisão
do mundo, que parece pronto a diluir-se,
alguns deles sempre estão no ar:
suas breves asas sustentam o céu.

Tradução amadora minha.

sexta-feira, 1 de julho de 2016