sábado, 30 de abril de 2016

Miguel Torga, "Insônia"


Só tu, musa cruel!
Só tu eras capaz
De uma tortura tão desnaturada.
Do pôr do sol até de madrugada,
O poeta indefeso
A ler um verso aceso
Na lâmpada apagada.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Adriano Espínola, "Travessia"


no
meio
do ca
minho

as 
pedr
as
pedr
as

mui
to
mais
pe
sad

as
perd
as
perd
as

quarta-feira, 27 de abril de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Leituras"


Livros, livros, livros...
Antes da palavra escrita,
o que lia o homem?
O Sol, certamente, como a Lua,
as estrelas, as nuvens, as árvores, as flores,
os pássaros, as águas,
o Vento...

Livros, livros, livros...
Mas também leio as coisas que os antepassados liam,
inclusive olhos,
que ao longo dos milênios aprimoraram muito
as suas dissimulações.
Os olhos,
que leio como leio os livros
e como os livros muitas vezes
são carregados de tolices, más intenções, fraudes,
aberrações,
ou opaca mediocridade.
Os olhos que também,
como os livros, de vez em quando nos levam a horizontes
em que a existência é cálida
e luminosa.

Livros, livros, livros...
Quando eu me for, aqui permanecerão
e quem quiser me visitar
só terá de abri-los.
Ali me verão, de alguma forma, porque por eles passei
e respirei seu ar, leve ou sufocante,
com maus cheiros ou vasto campo de perfumes.
Poi ali permanecerei
por mais um tempo ainda,
mesmo já fechado o último volume
de mim.

terça-feira, 26 de abril de 2016

Jorge Luis Borges













"nuvens (I I)"

Pelo ar andam plácidas montanhas
ou cordilheiras trágicas, sombreadas,
que escurecem o dia. São as chamadas
nuvens. As formas soem ser estranhas.
Shakespeare observou uma. Parecia
um dragão. Essa nuvem de uma tarde
em sua palavra resplandece e arde
e nós ainda a vemos, todavia.
Que são as nuvens? uma arquitetura
do acaso? Talvez sejam requisito
de Deus para a criação de Seu infinito
invento, fios de Sua trama obscura.
Talvez não seja a nuvem menos vã
que o homem que a contempla na manhã.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

domingo, 24 de abril de 2016

Fernando Pessoa - Bernardo Soares, "Livro do Desassossego"














Capítulo 319.
      Reconheço hoje que falhei; só pasmo, às vezes, de não ter previsto que falharia. Que havia em mim que prognosticasse um triunfo? Eu não tinha a força cega dos vencedores ou a visão certa dos loucos... Era lúcido e triste como um dia frio.
      As coisas nítidas confortam, e as coisas ao sol confortam. Ver passar a vida sob um dia azul compensa-me de muito. Esqueço indefinidamente, esqueço mais do que podia lembrar. O meu coração translúcido e aéreo penetra-se da suficiência das coisas, e olhar basta-me carinhosamente. Nunca eu fui outra coisa que uma visão incorpórea, despida de toda a alma salvo um vago ar que passou e que via.
      Tenho elementos espirituais de boémio, desses que deixam a vida ir como uma coisa que se escapa das mãos e a tal hora em que o gesto de a obter dorme na mera ideia de fazê-lo. Mas não tive a compensação exterior do espírito boémio — o descuidado fácil das emoções imediatas e abandonadas. Nunca fui mais que um boémio isolado, o que é um absurdo; ou um boémio místico, o que é uma coisa impossível.
      Certas horas-intervalos que tenho vivido, horas perante a Natureza, esculpidas na ternura do isolamento, ficar-me-ão para sempre como medalhas. Nesses momentos esqueci todos os meus propósitos de vida, todas as minhas direções desejadas. Gozei não ser nada com uma plenitude de bonança espiritual, caindo no regaço azul das minhas aspirações. Não gozei nunca, talvez, uma hora indelével, isenta de um fundo espiritual de falência e de desânimo. Em todas as minhas horas libertas uma dor dormia, floria vagamente, por detrás dos muros da minha consciência, em outros quintais; mas o aroma e a própria cor dessas flores tristes atravessavam intuitivamente os muros, e o lado de lá deles, onde floriam as rosas, nunca deixava de ser, no mistério confuso do meu ser, um lado de cá esbatido na minha sonolência de viver.
      Foi num mar interior que o rio da minha vida findou. À roda do meu solar sonhado todas as árvores estavam no outono. Esta paisagem circular é a coroa-de-espinhos da minha alma. Os momentos mais felizes da minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu via-me nos lagos deles como um Narciso cego, que gozasse a frescura próximo da água, sentindo-se debruçado nela, por uma visão anterior e noturna, segredada às emoções abstratas, vivida nos recantos da imaginação com um cuidado materno em preferir-se.
      Os teus colares de pérolas fingidas amaram comigo as minhas horas melhores. Eram cravos as flores preferidas, talvez porque não significavam requintes. Os teus lábios festejavam sobriamente a ironia do seu próprio sorriso. Compreendias bem o teu destino? Era por o conheceres sem que o compreendesses que o mistério escrito na tristeza dos teus olhos sombreara tanto os teus lábios desistidos. A nossa Pátria estava demasiado longe para rosas. Nas cascatas dos nossos jardins a água era pelúcida de silêncios. Nas pequenas cavidades rugosas das pedras, por onde a água escolhia, havia segredos que tivéramos quando crianças, sonhos do tamanho parado dos nossos soldados de chumbo, que podiam ser postos nas pedras da cascata, na execução estática de uma grande ação militar, sem que faltasse nada aos nossos sonhos, nem nada tardasse às nossas suposições.
      Sei que falhei. Gozo a volúpia indeterminada da falência como quem dá um apreço exausto a uma febre que o enclausura.
      Tive um certo talento para a amizade, mas nunca tive amigos, quer porque eles me faltassem, quer porque a amizade que eu concebera fora um erro dos meus sonhos. Vivi sempre isolado, e cada vez mais isolado, quanto mais dei por mim.

sábado, 23 de abril de 2016

Miguel Torga, "'A Largada', 1º Poema da História Trágico-Marítima"


Foram então as ânsias e os pinhais
Transformados em frágeis caravelas
Que partiam guiadas por sinais
Duma agulha inquieta como elas...

Foram então abraços repetidos
À Pátria-Mãe-Viúva que ficava
Na areia fria aos gritos e aos gemidos
Pela morte dos filhos que beijava.

Foram então as velas enfumadas
Por um sopro viril de reacção
Às palavras cansadas
Que se ouviram no cais dessa ilusão.

Foram então as horas no convés
Do grande sonho que mandava ser
cada homem tão firme nos seus pés
Que a nau tremesse sem ninguém tremer.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Leis estranhas em Delaware (EUA)


-- É proibido vender cadáver sem uma licença.
-- Filmes de classificação restrita não podem ser exibidos em drive-ins.
-- É ilegal voar sobre a água, a não ser que a pessoa esteja carregando suprimentos suficientes de alimentos e bebidas.
-- É proibido usar calças apertadas na cintura.
-- Casar-se por pilhéria ou brincadeira é fundamento para anulação.
-- Em Rehoboth Beach: A ninguém é permitido trocar de roupa dentro do veículo. Também: É proibido assobiar na igreja. Ainda: Clubes noturnos não podem servir bebidas, se danças estiverem ocorrendo ao mesmo tempo.

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Lúcio Cardoso, "Doze anos depois"


Não há cedo nem tarde. Há
o que há. Nem amor que fale,
nem medo que seja meu.
Se digo, não sei se cale
esta hora que se corrompeu -
existir é assim. Alto e perdido
sem programa que seja seu.
E nada vale.

segunda-feira, 18 de abril de 2016

Ivan Junqueira













"Eis que envelheces"

Célula a célula,
vértebra a vértebra,
de ti o espectro,
eis que envelheces:

não mais o aéreo
passo de Pégaso,
nem as hipérboles
da áurea quimera,

mas só o inverno
da áspera pele
que trinca e engelha
como a de um réptil,

ou as exéquias,
sem círio ou prece,
do ralo esperma
que nada gera.

Na boca, uns restos
do que antes eram
palavra, verve,
humor feérico,

lirismo etéreo,
enigmas, dédalos,
que agora hibernam
no oco das trevas.

As mãos entrevam,
os olhos secam,
a alma enfeza
sem luz ou fé.

No entanto, és mestre
no ofício indébito
que tanto exerces:
o de dar crédito

àquela moeda,
gasta e decrépita,
em cujo verso
relês que o eterno

é a tua gleba
e que, por certo,
mais sábio és
porque mais velho.

É que te esqueces
de que há, mais pérfida,
outra exegese
sobre essa tese:

a que interpreta
álgida e cética,
todas as pérolas
que te oferecem.

É que nada o que herdas
por seres velho,
exceto a cédula
de uma hipoteca

que em vão fizeste
da pouca terra
em que teus pés
sequer puseste

- da escassa terra
em que coubessem,
não teus troféus,
mas só teus restos.

A noite sela
com uma pétala
teus olhos cegos.
Eis que envelheces.

domingo, 17 de abril de 2016

Nauro Machado, "Fila indiana"


Um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, continuam

(a conduzir seus madeiros 
na perícia dos próprios dramas)

um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século 
após séculos, e de novo

um atrás do outro, atrás um do outro,
até a surdez final do pó.

sexta-feira, 15 de abril de 2016

Cecília Meireles, "Reinvenção"


A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas…
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo… — mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.

Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço…
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.


quinta-feira, 14 de abril de 2016

Leis estranhas em Dakota do Sul (EUA)


-- É ilegal se deitar e dormir em uma fábrica de queijos.
-- Filmes em que policiais são atacados, agredidos ou tratados de maneira desrespeitosa são proibidos.
-- Se alguém ver mais de cinco índios em sua propriedade, você pode atirar neles.
-- Em Fountain Inn: Cavalos não são permitidos na cidade, a não ser que estejam vestidos.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

terça-feira, 12 de abril de 2016

Lúcio Cardoso, "Anotação da febre"


Aciona, febre, tua máquina de espanto
e dissolve o sono
antes que ele inaugure
teu epitáfio de uma hora.

Inventa, oh!, inventa um pássaro,
inventa um  pássaro de sangue,
inventa um pássaro enorme
que meu coração obscureça
e nele desate suas folhas
de mortal verão.

Inventa um pássaro de sangue
e que ele subindo
pelas quatro portas do meu ser,
cante, e cante tão alto
que seu canto seja
como o flamejar de um único rubi.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Canção de depois de tanto"


a Roniwalter Jatobá

Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.

Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.

Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.

Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.

sábado, 9 de abril de 2016

Ivan Junqueira















"Não vês, meu pai"

Não vês, meu pai, que estou ardendo,
e ardendo é que entro no teu sonho
em busca do que em mim suponho
ser essa luz que vou perdendo?

Não vês que ao pé de ti me ponho
para que saibas como é horrendo
na chama lúbrica ir lambendo
enquanto às trevas me disponho?

Não vês que, morto, estou vivendo
em meio às névoas do teu sonho,
onde sem dor me recomponho
e com teu sangue afim me entendo?

 Não vês, meu pai, que a vida é sonho
e que só nele foi se erguendo
da morte quem a teve, ardendo,
enfim triunfou sobre o medonho?

sexta-feira, 8 de abril de 2016

Adriano Espínola, "Poesia"


Na noite
imensa,

o único
crime

que com-
pensa.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Eucanaã Ferraz, "Saudade"


Tarde a noite,
ensaio poemas a ti.

Desisto, exausto
pelo trânsito de tantas palavras.

As flores do lençol se abrem
e o silêncio escorre como um rio.

Liberto-me da tua imagem.
Amo-te

e nada mais é preciso
para que o tempo passe.


terça-feira, 5 de abril de 2016

Ana Cristina Cesar, "33ª Poética"


estou farto da materialidade embrulhada do signo 
da metalinguagem narcísica dos poetas 
do texto de espelho em punho revirando os óculos 
modernos

estou farta dessa falta enxuta 
dessa ausência de objetos rotundos e contundentes 
do conluio entre cifras e cifrantes 
da feminil hora quieta da palavra 
da lista (política raquítica sifilítica) de supersignos cabais: “duro 
ofício”, “espaço em branco”, “vocábulo delirante”, “traço infinito".    

quero antes 
a página atravancada de abajures 
o zoológico inteiro caindo pelas tabelas 
a sedução os maxilares 
o plágio atroz 
ratas devorando ninhadas úmidas 
multidões mostrando as dentinas 
multidões desejantes 
diluvianas 
bandos ilícitos fartos excessivos pesados e bastardos 
a pecar e por cima

os cortinados do pudor 
vedando tudo 
com goma
de mascar.

domingo, 3 de abril de 2016

João Carlos Teixeira Gomes, "Odore di femina"

Senti os cheiros da mulher amada
num embalo floral de mil alentos,
tal a doce fragrância revelada
em seu jardim de mágicos acentos.

Quanto amei essa rosa marejada,
maior foi meu farnel de desalentos,
por saber, em paixão desatinada,
que um peito de mulher só gera ventos.

Ó musa dos perfumes traiçoeiros
que me tens sem razão, tonto e rendido,
ao feitiço que exalas com teus cheiros,

nesse jogo de amor enlouquecido,
até a primavera, nos outeiros,
a teu corpo cedeu cetro florido.

sábado, 2 de abril de 2016

Ruy Espinheira Filho














"Reflexos"

1.
Então assim foi
e estávamos sempre seguros
de que éramos todos muito ricos
de futuros.

E lá íamos nós,
como a vida ia,
rumo a horizontes
de luzentes pedrarias.

2.
Havia pouco
para ser lembrado,
muito escasso ainda
o passado,
de onde nada vinha
que nos fizesse compor,
de corações doloridos,
alguma balada sobre damas
de tempos idos.

3.
Mas já descobríamos
em dias assustados,
em noites infindas,
florescentes damas,
alegres e lindas,
que nos transformavam
em príncipes encantados
ou em tristes tigres
enjaulados.

4.
Trilhávamos dias e noites
inconsequentes
como quaisquer garotos
inteligentes.

Mas não da inteligência
dos gênios da escola,
campeões na gramática
e na ciência,
de comportamentos
austeros e puros,
os quais já antevíamos,
com clarividência
(confirmada pela vinda
dos futuros),
brilhantemente medíocres
e obscuros.

5.
E logo, para todos,
vieram os futuros,
tão subitamente,
que alguns nem os sentiram,
pois, antes que chegassem,
partiram.

6.
Outros foram ficando
e pouco a pouco
se dispersando,
fitando, do escuro,
um sol de futuro,
sempre belo e quente,
mas sempre amanhã,
jamais no presente.

Como hoje ainda,
brilha à nossa frente,
esse sol, agora
já morno, morrente,
quase nada aquecendo
a nós, que prosseguimos,
nesse rumo do poente,
pesados de passado
cada vez mais presente.

7.
Colho estes reflexos
de história finda
para uns, para outros
pulsando ainda.

Murcharam os futuros,
mas um dia os tivemos
em infinita paisagem
convocando à viagem.
A que sempre leva
ao fim do futuro,
destino comum
do puro e do impuro.

8.
Que seja, mas nada,
até o fim de tudo
nos tira a paisagem
do tão claro dia
em que íamos nós
como a vida ia:
sábios como Sócrates,
que nada sabia.