quinta-feira, 31 de março de 2016

Miguel Torga, "Dúvida"


O céptico sorriso da paisagem
Quando, funéreo, o sino
Avisa o mundo de que vai cerrar-se
O véu de trevas da Semana Santa!
A seiva é tanta
A borbulhar nas vinhas,
Voam com tal volúpia as andorinhas
Rente ao chão semeado,
É tão fresco, ligeiro e perfumado
O ar que se respira,
Que tem de ser mentira
O negro pesadelo anunciado.

quarta-feira, 30 de março de 2016

Alberto da Cunha Melo, "Lição de casa"


Terminado o maldito dia,
e lá vem a literatura,
oportunista, faturar
metáforas desta amargura;

saturar de sal uma lágrima
que não seria derramada;

e lá vem seu jeito vaidoso
de não sofrer como os demais
e reinar no fundo do poço,

quando a dor pura, mais solar,
abre as portas para gritar.

segunda-feira, 28 de março de 2016

Miguel Torga, "Tarefa"


Ergo o meu canto no areal do tempo,
Conforme com as leis da natureza.
Poeta da incerteza,
É um hino incerto
Que deixo no deserto
Onde apenas  a morte tem firmeza.

Foi outro sonho que sonhei outrora,
Antes de conhecer o duro preço
Que pagamos por cada insensatez.
Sonhei que a Eternidade
Era verdade,
E que chegara nela a minha vez.

Mas, a despeito da desilusão,
Ponho argamassa, aprumo a inspiração
E assento os versos com rigor dobrado.
É não sei que sagrada confiança
Em não sei que sagrada segurança
Do trabalho acabado.

domingo, 27 de março de 2016

Vinícius de Moraes, "Soneto de intimidade"


Nas tardes de fazenda há muito azul demais. 
Eu saio às vezes, sigo pelo pasto, agora 
Mastigando um capim, o peito nu de fora 
No pijama irreal de há três anos atrás. 

Desço o rio no vau dos pequenos canais 
Para ir beber na fonte a água fria e sonora 
E se encontro no mato o rubro de uma amora 
Vou cuspindo-lhe o sangue em torno dos currais. 

Fico ali respirando o cheiro bom do estrume 
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme 
E quando por acaso uma mijada ferve 

Seguida de um olhar não sem malícia e verve 
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma 
Mijamos em comum numa festa de espuma.

sábado, 26 de março de 2016

sexta-feira, 25 de março de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Canção matinal"


a Ricardo Vieira Lima

Acorda bem cedo o homem
da casa de telha-vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.

E eis que a vida não é mais
nem triste, nem só, nem vã.
É doce: cheira a goiaba
e brilha como romã

orvalhada. E ele caminha,
o homem, com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.

Já não há mágoas de perdas
nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã

é a própria alma do homem
da casa de telha-vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.

quinta-feira, 24 de março de 2016

Leis estranhas em Dakota do Norte (EUA)


-- É ilegal se deitar e dormir de sapatos.
-- Cervejas e “pretzels” (rosca salgada) não podem ser servidos ao mesmo tempo em bar ou restaurante.
-- Não é ilegal atirar em um índio a cavalo, se o atirador estiver dentro de uma carruagem fechada.
-- Em Devils Lake: Fogos de artifícios de Ano Novo só podem ser disparados até às 23h.
-- Em Fargo: É proibido usar chapéu ao dançar ou em qualquer evento em que há performance de dança.

terça-feira, 22 de março de 2016

Lúcio Cardoso, "Como no oceano, ao bar aportam ..."


Como no oceano, ao bar aportam entre o óleo e o sal, todos os detritos. O que mais gosto é esta luz de cais. É o que se lê nos olhos dos que chegam.

Imaginei uma carta: meu amor. Depois pensei que era tarde demais. Mas ter errado, sempre, nunca foi por imaginar dessas coisas? O apetite pressupõe uma audácia que, ai de mim, não existiu nem agora nem nunca.

Não poderei dizer nunca que passei a via em branca nuvem. Tudo me veio às mãos. Mas com que impaciência destruí tudo. O inventado sempre me pareceu muito melhor.

Não há vivido, há esgotado. Não vivi, esgotei-me. Nascido doente, sou um convalescente de mim mesmo.

Que Deus não me permita nunca a cura.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Miguel Torga, "Alvorada"


Amanhece...
E amanhece o desespero...
Dura condenação
Da vida humana!
Angústias a oprimir o coração,
Seguidas como os dias da semana.

Mais vinte e quatro horas
De negrura,
Que o sol nem há-de ver, na sua pressa.
Em vez dum claro apelo,
O pesadelo
Dum sonho mau, que apenas recomeça.

sábado, 19 de março de 2016

David Mourão-Ferreira, "O corpo iluminado"


XXIII

Uma névoa de mágoa muito antiga
torna-te às vezes quase inatingível.

sexta-feira, 18 de março de 2016

Adriano Espínola, "Maria"


                                                     A José Maurício Gomes de Almeida

Diz que dá pernadas na lua.
Entre uma cerveja e outra,
decifra os bigodes do chinês.
Com a mão esquerda,
retira um buzio da boca
de um marinheiro.
Com a bacia das coxas,
apara a resina do sexo.
Arranha com as unhas esmaltadas
a miçanga das estrelas.
Depois dorme por entre os gatos
e palavras impublicáveis.

Ave Maria, cheia de graças.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Leis estranhas em Connecticut (EUA)


-- Guardas-noturnos são proibidos de tomar café descafeinado em serviço.
-- O homem não pode escrever carta de amor a mulher, cujos pais proibiram o relacionamento.
-- Registros da cidade não podem ser mantidos onde bebidas são vendidas.
-- É ilegal descartar lâminas de barbear usadas.
-- Em Devon: É proibido andar para trás depois do pôr do sol.
-- Em Hartford: É proibido atravessar a rua caminhando com as mãos. Também: É proibido educar cachorros. Ainda: O homem não pode beijar a mulher no domingo.
-- Em Waterebury: Esteticistas não podem cantarolar (de boca fechada), assobiar ou cantar quando estiver atendendo um cliente.

terça-feira, 15 de março de 2016

Lúcio Cardoso, "Primeiro vem o tempo de achar..."


Primeiro vem o tempo de achar, depois o
de seguir. Depois desses, outros tempos, até
que venha um tempo só, e é o logo e
solitário tempo do perdido. Mas para isto
é que a memória vale: aí, nessa distância
esta paisagem não parecerá mais uma visão
desconhecida, terá apenas um ar familiar
e antigo, que nos lembra
aquilo que existiu, e foi nosso sem que
soubéssemos que era nosso. Será então o
tempo de entender.


segunda-feira, 14 de março de 2016

domingo, 13 de março de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Canção de depois de tanto"


a Roniwalter Jatobá

Vamos beber qualquer coisa,
que a vida está um deserto
e o coração só me pulsa
sombras do Ido e do Incerto.

Vamos beber qualquer coisa,
que a lua avança no mar
e há salobros fantasmas
que não quero visitar.

Vamos beber qualquer coisa
amarga, rascante, rude,
brindando sobre o já frio
cadáver da juventude.

Vamos beber qualquer coisa.
O que for. Vamos beber.
Mesmo porque não há mais
o que se possa fazer.

sábado, 12 de março de 2016

Ivo Barroso, "O sino"


Teu nome é um sino imerso no meu peito.
Um pequenino verso que nasceu já feito.
Plange tão silente na manhã festiva
de minha alma cheia,
que o não ouve a gente nem desperta a aldeia.
Nasce tão calado da emoção tão viva
que me sela a boca,
que qualquer pessoa não percebe ao lado
como o sino toca, como o verso soa.

quinta-feira, 10 de março de 2016

Lúcio Cardoso, "Amendoeira III"


Espaço, és um sentido evangélico.
A amendoeira de faz
do restrito: sua vida
anseia o outeiro derribado
ao sol poente.

Vaga forma de música,
vibra tua seiva criando
um teto de ouro:
aqui, neste instante, fica:

nada melhor que o poema
para te fazer viver.
Pelo tronco escuro
um azul amanhece
- és tu, amendoeira,
no teu novo ser de amanhã.

quarta-feira, 9 de março de 2016

Jorge Luis Borges, "Susana Soca"


Com lento amor mirava esses dispersos
Esplendores da tarde. É que aprazia
A ela se perder na melodia
Ou na existência singular dos versos.
Mas não o rubro elemental, os grises
Fiaram seu destino delicado
Feito pra discernir o exercitado
Na irresolução e nos matizes.
Não ousando pisar este perplexo
Labirinto, de fora ela mirava
As formas, o tumulto e toda a estrada
Como outra dama, essa mulher do espelho.
Deuses que moram para além do rogo
A abandonaram a esse tigre, o Fogo.


Susana Soca (1906 - 1959) foi uma poeta uruguaia que morreu num acidente de avião quando voltava para a Argentina.

segunda-feira, 7 de março de 2016

Ivo Barroso, "Despojamento"


Eliminei o excesso de paisagem
simplifiquei toda a decoração
retirei quadros flores ornamentos
apaguei velas copos guardanapos e a música
Bani a inutilidade do discurso
Na mesa de madeira
nua
apenas dois pratos brancos
sem talheres
O banquete será tua presença


domingo, 6 de março de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Soneto do anjo de maio"


Então, em maio, um Anjo incendiou-me.
Em seu olhar azul havia um dia
claro como os da infância. E a alegria
entrou em mim e em sua luz tomou-me

o coração. Depois, suave, guiou-me
para mim mesmo, para o que morria,
em meu peito, de olvido. E a noite, fria,
fez-se cálida — e a mágoa desertou-me.

Já não eram as cinzas sobre o Nada,
mas rios, e ventos, e árvores, e flamas,
e montes, e horizontes sem ter fim!

Era a vida de volta, resgatada,
e nova, e para sempre, pelas chamas
desse Anjo de maio que arde em mim!

sexta-feira, 4 de março de 2016

Eucanaã Ferraz, "Cisnir"


O verbo cisnir, intransitivo,
assinale o modo como
entre rodas e transeuntes,

no trânsito
(repentinamente transmutado em águas,
lama e restos

que se desviam num aluvião sem nexo
a fim de que o rapaz passe) o rapaz
cisne.


quinta-feira, 3 de março de 2016

Leis estranhas no Colorado (EUA)

Colorado

-- É ilegal cavalgar sob a influência do álcool.
-- A ninguém é permitido urinar em público.
-- É proibido matar passarinhos dentro dos limites da cidade.
-- É proibido mutilar uma rocha em parque público.
-- Em Alamosa: Disparar mísseis em automóveis é ilegal. Também: Manter casas onde pessoas solteiras fazem sexo é ilegal.
-- Em Arvada: Estabelecimentos que vendem bebidas alcoólicas devem ter iluminação suficiente para se ler lá dentro.
-- Em Aspen: Catapultas não podem ser disparadas em edifícios.
-- Em Boulder: É legal desafiar um policial, mas só até ele pedir para você parar. Também: Não é permitido colocar sofás na varanda.
-- Em Cripple Creek: É ilegal levar seu cavalo ou mula acima do andar térreo em qualquer edifício.
-- Em Denver: O operador da carrocinha deve notificar os cachorros sobre apreensões com três dias de antecedência, colocando cartazes nas ruas e nas árvores de parques. Também: É proibido emprestar o aspirador de pó ao vizinho ao lado.


terça-feira, 1 de março de 2016

João Carlos Teixeira Gomes, "Soneto da Lição Zoológica"


Quando menino nunca amei leões.
Preferi os animais mais delicados.
Por patos mansos e por camaleões
meu zoo infantil era habitado.

Tive um cão que foi predestinado:
por sua amada se perdeu em fuga.
E um gafanhoto místico e alado
que pulava mais alto que uma pulga.

Amei abelhas, lagartos, formigões
e galos magros de expelir auroras...
Fiéis amigos que foram embora!

Todos eles me encheram de lições
de ternura que, homem, desaprendi.
De leões só vim saber quando cresci.