quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Greta Benitez, "Cães dos jardins"


Lindos cães dos Jardins
Deitados sob as mesas
Onde seus donos estão sentados
Olhando a cidade que se move
Línguas ondulam em caimento perfeito
Olhar feito de puro ensinamento
Dignidade
Honestidade
Tudo isso mora
Dentro dos cães dos Jardins
E sobre a mesa
Um café preto, água mineral
E um jornal
Que contém todo horror do mundo.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Pedro Paulo de Sena Madureira, "Este é um trabalho como outro qualquer..." da série "Vício Inconfessável"


Este é um trabalho
como outro qualquer.
Quem o faz, entre vários,
tem também  de escolher
o melhor atalho,
o passo mais afim que o chão
a percorrer requer.
Ou, se for mar de navegar,
o rastro certeiro das ondas,
o talho que elas rasgam e logo some,
para o barco em que vai
não naufragar.

Há, porém, um avesso diverso
nesta faina e lida.
A matéria que lhe move
a fábrica não são
as coisas:
são imagens,
paina solta no ar.
Nunca se sabe quando
funcionam ou param suas máquinas,
quando estão ou não dispostas a operar,
e o combustível que usam
onde o encontrar?

Este é um ofício tão raro
que prefere por sócio,
mais que o trabalho, o ócio.

(No poema, o autor fala sobre a criação literária.)

domingo, 27 de setembro de 2015

Ovtavio Paz, "Garatuja"


Com um pedaço de carvão
com meu giz quebrado e meu lápis vermelho
desenhar teu nome
o nome de tua boca
o signo de tuas pernas
na parede de ninguém
Na porta proibida
gravar o nome de teu corpo
até que a lâmina de minha navalha
sangre
            e a pedra grite
e o muro respire como um peito

Tradução de Luís Pignatelli

sábado, 26 de setembro de 2015

Leonor Scliar-Cabral












"Córdoba, Sevilha"

Em Córdoba vendem livros,
as cítaras em Sevilha.

Morena, morena minha,
cheirando a unguentos e mirra,
se um beijo ou cravo me atiras,
dou-te em troca meu destino.

Em Córdoba vendem livros,
as cítaras em Sevilha.

Para sentir teu sorriso,
tocar tua pele de oliva,
esconde-me em tua mantilha,
te tocarei de mansinho.

Em Córdoba vendem livros,
as cítaras em Sevilha.

Neste balcão escondidos,
trocaremos mil carícias.
Ouvirão teus gemidos,
pensam que em sonhos deliras.

Em Córdoba vendem livros,
as cítaras em Sevilha.

São cor de açafrão os bicos
que eu sugo, tão pequeninos,
e uma carola teu umbigo
e os pelos onde me aninho.

Em Córdoba vendem livros,
as cítaras em Sevilha.

Tuas entranhas são figos
que se abrem entumecidos
e se desmancham macios
colhidos no paraíso.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

António Patrício, "Relíquia"


Era de minha mãe: é um pobre xale
que tem pra mim uma carícia de asa.
Vou-lhe pedir ainda que me fale
da que ele agasalhou em nossa casa.

Na sua trama já puída e lassa
deixo os meus dedos pra senti-la ainda;
e Ela vem, é Ela que me abraça,
fala de coisas que a saudade alinda.

É a minha mãe mais perto, mais pertinho,
que eu sinto quando toco o velho xale,
que guarda um não sei quê do seu carinho.

E quando a vida mais me dói, no escuro,
sinto ao tocá-lo como alguém que embale
e beije a minha sede de amor puro.

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Adriano Espínola, "As dunas"

                 Tu, hora, revoas nas dunas.                                           
                              Paul Celan

Avançam,
sorrateiras,
tangidas pela mão simétrica
do vento. 

A luz da manhã sobre elas
escorre
como ondas na maré
cheia.

Verdevivos,
os arbustos se agarram
em desespero
à alva memória da areia.
 
Ali,
as dunas espreitam a cidade
— o bote de areia armado —
à espera do tempo. 

Tácitas,
levam nas costas,
esvoaçante,
o presente;
nos peitos, o passado
semovente.
 
 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Cecília Meireles










"Gargalhada"

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
Eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármores baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
- e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas, Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas...

Escuta bem:

Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje essa música heroica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.

domingo, 20 de setembro de 2015

Carlos Heitor Cony, "O Projetor"


No fim de semana chuvoso, o azar de descobrir um defeito no aparelho de som. Comprara alguns DVDs, inclusive a "Missa de Angelis" gravada na Abadia de Solésmes, raridade que procurava há anos. O jeito foi arquivar o desejo de ouvir música.

Fui mexer nuns velhos guardados e descobri o antigo projetor de slides, que julgara desativado. Bastou apertar a lâmpada e ele funcionou. Troquei de brinquedo e arrumei a cangalha num quarto vazio, onde a parede branca esperava as imagens descoloridas de um outro tempo, que vieram mansamente, trazendo farrapos do passado, subitamente iluminados –e tão verdadeiros, tão cruéis em sua verdade, em seu momento que não volta mais.

Aquele sujeito não me é estranho, mas, honestamente, não me lembrava dele. Está um pouco mais magro, o bigode é menos grosso, os cabelos mais fartos e escuros, mas o cachimbo é o mesmo, deve estar no meio dos outros lá na sala. Sim, sou eu mesmo, sentado na amurada de um rio, o tempo descoloriu a paisagem em volta, pode ser o Tibre ou o Vistula, o Sena ou o Tamisa, talvez seja mesmo o Danúbio, numa Viena que me deslumbrou.

Recordações de viagens, escombros de matérias para uma revista, e, no meio de tudo, os instantes de uma casa –a minha casa– no sofá de couro está deitada a mulher, o ângulo da foto mostra-lhe as pernas, grande parte das coxas. Por milagre –ou talvez castigo–, as cores ainda estão vivas e fortes. Devia ficar olhando para sempre aquela foto, tão real e minha –e já fantasma e alheia.

Não devia estar fuçando o passado, perdi a vontade de continuar. Guardei os slides, pensei em jogá-los fora, mas tive pena de mim mesmo e resolvi conservá-los no mais obscuro de mim mesmo. Lúcido e só, amaldiçoei o projetor, cúmplice da memória que ainda dói.

Crônica publicada hoje no Jornal "Folha de São Paulo".


Teixeira de Pascoaes, "As minhas sombras"


                        Ao José d 'Albuquerque Alvares Pikho

Ó sombras que durante a noite me falais,
Quando penso e não sei porque a este mundo vim!
ó vós, que a minha Noite imensa povoais,
Qual o corpo que vos projecta junto a mira?...

Donde dimana a luz estranha que vos cria?
Quem sois vós, quem sois vós, ó sombras bem amadas.
Donde um grande esplendor que ofusca se irradia
Como dura horizonte a luz das madrugadas? 

Ó Sombras que morreis na claridade ansiosa
Do meu nevoento olhar distante, que desmaia.
Como vem falecer uma onda harmoniosa
No meu ouvido, que é uma longínqua praia... 

Quem sois vós, quem sois vós, vagas sombras perdidas
Que me livrais do Sol, do meu grande inimigo?
Quem sois vós, quem sois vós, fantasmas doutras vidas
Que me falais se eu ando, à noite, só comigo? 

Ó Sombras com quem vou, à noite, conversar,
Vós vindes até a mim para eu vos conhecer!
Sereis da minha dor um pálido luar.
Um reflexo do que arde em mim, sem ela saber?... 

Soa como os doidos, como os vermes que só amam
A noite, que o meu vago Ideal tanto parece!
Quantas vozes, meu Deus, que de dia não chamam,
E quanto dia só à noite é que amanhece!
A noite 6 para mim uma estranha alvorada,
Nuvem, filha da Luz, que é um grande mar sem fundo...
E, se deixa esta Terra em trevas sepultada.
Que dia, que esplendor não é para outro mundo!  

Noite, tu és a luz do mundo que eu habito...
Indefinido mundo, assim como um clarão.
Que, num amor, percorre esse azul infinito
Que existe para além da nossa Aspiração.

Onde tudo termina é que ele principia;
O espaço é um seu limite, a luz, o som, a cor...
É vago como a alma etérea da harmonia
Que se exala do seio imaterial da Dor... 

Sombras, vós sois o Sol do mundo misterioso,
Onde minh'alma vive a sua eternidade;
E embora seja, para os outros, nebuloso,
É esse Sol a verdadeira Claridade!

Sois o infinito Amor, o puro olhar de Deus,
ó Sombras que durante a noite me apareceis!
Vós sois a Luz que existe além da luz dos céus
E donde todas vós, estrelas, descendeis...

 

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Eucanaã Ferraz, "roberto ..."


roberto vinha andando pela rua e viu um pássaro
que achou bonito. reza por ele pássaro que o roberto
achou bonito.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Alberto Lins Caldas, "Menta"


● artemisia gosta desses ●
● charutos horrorosos de menta ●
● esses q deixam a sensação de esgoto ●

● de banheiro de hotel safado na boca ●
● como se um sabão de menta entrasse ●
● goela abaixo eu digo pra ela ●

● mas artemisia gosta desses ●
● charutos imundos e fica assim nua ●
● fumando pelo quarto pelo banheiro ●

● esses charutos infelizes de menta ●
● porq depois a pele a lingua os dedos ●
● tudo é esse charuto perverso ●

● de menta crua com tabaco jamaicano ●
● essa coisa infeliz q se faz aqui ●
● no mercado entre tartarugas mortas ●

● mas artemisia não passa sem isso ●
● sem esses charutos porcos de menta ●
● mas eu digo artemisia suas coxas ●

● são charutos de menta teu sexo ●
● artemisia tem cheiro tem gosto ●
● de menta artemisia tudo em vc ●

● tem cheiro tem gosto de charuto ●
● de menta artemisia tem isso de menta ●
● como se vc fosse um charuto de menta ●

● artemisia digo isso artemisia ●
● porq eu detesto charuto de menta ●
● ela ouve e cai na gargalhada fumando ●

● tragando aquele charuto de menta ●
● pelo quarto como se fosse marinheiro ●
● turco ou guerrilheiro afegão ●

● artemisia toda nua pelo quarto ●
● fuma aquele charuto de menta ●
● grita é isso mesmo é sempre assim ●

● q se foda o resto meu idiota porq basta ●
● o charuto de menta e aqui so essa vida ●
● de merda dizia artemisia e eu ●

● q me foda eu com o charuto de menta ●
● de artemisia q é um grande charuto nu ●
● de menta negra e nua pelo quarto ●
 
 
 
 

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Fernando Pessoa - Bernardo Soares, "Livro do Desassossego"













Capítulo 433.

Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu o era. Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos outros sem semelhança, irmão de todos sem ser da família.
Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos eram como os deles nos soalhos e nas lajes, mas o meu coração estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho.

Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha*, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim. Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram as minhas, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não tem mãos que outros apertem, quem me conheço não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os outros.

Vivemos todos longínquos e anônimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.

Saber bem que quem somos não é conosco, que o que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações?

Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara — dominó sem graça — caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pensando.

Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um luar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...
* Igualha - s.f. Identidade de condição ou posição social, naipe: cada um com os da sua igualha, com os seus iguais.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Rose Ausländer, "Espaço"


Ainda há espaço
para um poema

Ainda é o poema
um espaço

Onde se pode respirar

Tradução de Antonio Cicero

sábado, 12 de setembro de 2015

Mônica Menezes, "Sonho de bailarina"


da caixa onde vivo
não posso alcançar o teu beijo
e guardo-me encolhida
os braços enlaçando as próprias pernas
os lábios comprimindo o desejo
já faz muito tempo
e esta caixa é minha única sina
mas noites a fio
(esgarçando os dedos de menina)
entremeio cristais e seda fina
e um diáfano vestido teço
para o sonho de ser bailarina


sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Conto de Herberto Helder, "Teorema"


    El-Rei D. Pedro, o Cruel, está na janela sobre a praceta onde sobressai a estátua municipal do marquês Sá da Bandeira. Gosto deste rei louco, inocente e brutal. Puseram-me de joelhos, com as mãos amarradas atrás das costas, mas levanto um pouco a cabeça, torço o pescoço para o lado esquerdo, e vejo o rosto violento e melancólico do meu pobre Senhor. Por debaixo da janela onde se encontra, existe uma outra em estilo manuelino, uma relíquia, obra delicada de pedra que resiste no meio do tempo. D. Pedro deita a vista distraída pela praça fechada pelos seus soldados. Vê a igreja monstruosa do Seminário, retórica de vidraças e nichos, as pombas que pousam na cabeça e nos braços do marquês e vê-me em baixo, ajoelhado, entre alguns dos seus homens. O rei olha para mim com simpatia. Fui condenado por ser um dos assassinos da sua amante favorita, D. Inês. Alguém quis defender-me, dizendo que eu era um patriota. Que desejava salvar o Reino da influência espanhola. Tolice. Não me interessa o Reino. Matei-a para salvar o amor do rei. D. Pedro sabe-o. Olho de novo para a janela onde se debruça. Ele diz um gracejo. Toda a gente ri.

    — Preparem-me esse coelho, que tenho fome.

    O rei brinca com o meu nome. O meu apelido é Coelho.

    O que este homem trabalhou na nossa obra! Levou o cadáver da amante de uma ponta a outra do país, às costas da gente do povo, entre tochas e cantos fúnebres. Foi um terrível espetáculo que cidades e lugarejos apreciaram.

    Alguém ordena que me levante e agradeça ao meu Senhor. Levanto-me e fico bem defronte do edifício. Vejo no rés-do-chão o letreiro da Barbearia Vidigal e o barbeiro de bigode louro que veio à porta ver o meu suplício. Vejo a janela manuelina e o rei esmagado entre os blocos dos dois prédios ao lado.

    — Senhor, — digo eu — agradeço-te a minha morte. E ofereço-te a morte de D. Inês. Isto era preciso, para que o teu amor se salvasse.

    Muito bem — responde o rei. —Arranquem-lhe o coração pelas costas e tragam-mo.

    De novo me ajoelho e vejo os pés dos carrascos de um lado para o outro. Distingo as vozes do povo, a sua ingênua excitação. Escolhem-me um sítio das costas para enterrar o punhal. Estremeço de frio. Foi o punhal que entrou na carne e cortou algumas costelas. Uma pancada de alto a baixo do meu corpo, e verifico que o coração está nas mãos de um dos carrascos. Um moço do rei espera com a bandeja de prata batida estendida sobre a minha cabeça, e onde o coração fumegante é colocado. A multidão grita e aplaude, e só o rosto de D. Pedro está triste, embora, ao mesmo tempo, se possa ver nele uma luz muito interior de triunfo. Percebo como tudo isto está ligado, como é necessário que todas as coisas se completem. Ah, não tenho medo. Sei que vou para o inferno, visto que sou um assassino e o meu país é católico. Matei por amor do amor — e isso é do espírito demoníaco. O rei e a amante também são criaturas infernais. Só a mulher do rei, D. Constança, é do céu. Pudera, com a sua insignificância, a estupidez, o perdão a todas as ofensas. Detesto a rainha.

    O moço sobe a escada com a bandeja onde o meu coração é um molusco quente e sangrento. Vê-se D. Pedro voltar-se, a bandeja aparecer perto do parapeito da janela. O rei sorri delicadamente para o meu coração e levanta-o na mão direita. Mostra-o ao povo, e o sangue escorre-lhe entre os dedos e pelo pulso abaixo. Ouvem-se aplausos. Somos um povo bárbaro e puro, e é uma grande responsabilidade estar à frente de, um povo assim. Felizmente o nosso rei encontra-se à altura do seu cargo, entende a nossa alma obscura, religiosa, tão próxima da terra. Somos também um povo cheio de fé. Temos fé na guerra, na justiça, na crueldade, no amor, na eternidade. Somos todos loucos.

    Tombei com a face direita sobre a calçada e, movendo os olhos, posso aperceber-me de um pedaço muito azul de céu, acima dos telhados. Vejo uma pomba passar em frente da janela manuelina. O claxon de um carro expande-se liricamente no ar. Estamos nos começos de junho. Ainda é primavera. A terra está cheia de seiva. A terra é eterna. À minha volta dizem obscenidades. Alguém sugere que me cortem o pênis. Um moço vai perguntar ao rei se o podem fazer, mas este recusa.

    — Só o coração — diz. E levanta de novo o meu coração, e depois trinca-o ferozmente. A multidão delira, aclama-o, chama-me assassino, cão, e encomenda-me a alma ao Diabo. Eu gostaria de poder agradecer a este meu povo bárbaro e puro as suas boas palavras violentas.

    Um filete de sangue escorre pelo queixo de D. Pedro, e vejo os seus maxilares movendo-se ligeiramente. O rei come o meu coração. O barbeiro saiu do estabelecimento e está a meio da praça com a sua bata branca, o seu bigode louro, vendo D. Pedro a comer o meu coração cheio da inteligência do amor e do sentimento da eternidade. O marquês Sá da Bandeira é que ignora tudo, verde e colonialista no alto do seu plinto de granito. As pombas voam à volta, pousam-lhe na cabeça e nos ombros, e cagam-lhe em cima. D. Pedro retira-se, depois de dizer à multidão algumas palavras sobre crime e justiça. Aclama-o o povo mais uma vez, e dispersa. Os soldados também partem, e eu fico só para enfrentar a noite que se aproxima. Esta noite foi feita para nós, para o rei e para mim. Meditaremos. Somos ambos sábios à custa dos nossos crimes e do comum amor à eternidade. O rei estará insone no seu quarto, sabendo que amará para sempre a minha vítima. Talvez que a sua inspiração não termine aí, e ele se torne cada vez mais cruel e mais inspirado. O seu corpo ir-se-á reduzindo à força de fogo interior, e a sua paixão será sempre mais vasta e pura. E eu também irei crescendo na minha morte, irei crescendo dentro do rei que comeu o meu coração. D. Inês tomou conta das nossas almas. Ela abandona a carne e torna-se uma fonte, uma labareda. Entra devagar nos poemas e nas cidades. Nada é tão incorruptível como a sua morte. No crisol do Inferno manter-nos-emos todos três perenemente límpidos. O povo só terá de receber-nos como alimento, de geração para geração. E que ninguém tenha piedade. E Deus não é chamado para aqui.

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Gomes Leal, "A fome de Camões"


Este vulto, portanto, que caminha
Altas horas, ao frio das nortadas,
É Camões que se definha
Nas ruas de Lisboa abandonadas.
É Camões que a sorte vil, mesquinha,
Faz em noites de fome torturadas,
Ele o velho cantor de heróis guerreiros!...
Vagar errante como os vis rafeiros.

Morreu-lhe o escravo, o seu fiel amigo,
O seu amparo e seu bordão no mundo,
Morreu-lhe o humilde companheiro antigo,
No seu vácuo deixando um vácuo fundo.
Hoje, pois, triste, velho, sem abrigo,
Faminto, abandonado e vagabundo,
Tenta esmolar também pelas esquinas.
Ó lágrimas!... Ó glória! Ó ruínas!...

terça-feira, 8 de setembro de 2015

Diego Callazans, "Advertência"


nem toda obra é prima.

algumas porções de argila
encontram cansado oleiro.

nem todo mármore é Fidias.
nem toda vida, Odisseia.

as moiras também se perdem
se tecem sob encomenda

nem todo herói é Aquiles.
mas mesmo maus mamulengos

tem uso em tramas pueris.
refugo - sei - é o que escrevo,

pois lesa é a musa que o diz.
nem todo verso é Homero.

alegra-te, tu que lês,
nós somos da mesma merda.

a irrelevância é fraterna.

domingo, 6 de setembro de 2015

Francisco Octaviano, "Ilusões da vida"


Quem passou pela vida em branca nuvem
E em plácido repouso adormeceu,
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu;
Foi espectro de homem, não foi homem,
Só passou pela vida, não viveu.

sábado, 5 de setembro de 2015

Hermes Fontes, "A fonte"


Depois de longa ausência e penosa distância,
vi a fonte da mata,
de cuja água bebi, na minha infância.

E que melancolia
nessa emoção, tão grata!

Ver - constância das coisas, na inconstância...
ver que a Poesia é uma segunda infância,
e que toda a poesia...

... vem da fonte da mata...

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Foto de Waclaw Wantuch, "Mulher Nua"


Reinaldo Ferreira, "Duma outra infância,inventada..."


Duma outra infância, inventada,
Guardo memórias que são
Reais reversos do nada
Que as verdadeiras me dão.

Estas, se acaso regressam,
Em tropel e confusão
Ao limiar-me, tropeçam
No corpo das que lá estão.

Assim, mentindo as raízes
Do meu confuso começo,
Segrego imagens felizes
Com que as funestas esqueço.

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Ivan Junqueira. "Onde estão?"

 
                                Partimos cuando nacemos,
                                   andamos mientras vivimos,
                                   y llegamos
                                   al tiempo que fenecemos;
                                   así que cuando morimos
                                   descansamos.
                                Jorge Manrique

Onde estão os que partiram
desta vida, desvalidos?
Onde estão, se não ouvimos
deles sequer uma sílaba?
 
Onde o pai, a mãe, a ríspida
irmã que se contorcia
sob a névoa dos soníferos
e a gosma da nicotina?

Ou bem a outra, a quem víamos
trincar, crispada, os caninos,
banhada em sangue e saliva,
no espasmo agudo das fibras?

Onde o riso dos meninos
que entre as folhas se escondiam
como pássaros nos ninhos,
ermos de infâmia ou malícia?

Onde a lúbrica menina
cujas coxas se entreabriam
à gula dos que sabiam
tocar-lhe os veios mais íntimos?

Onde, enfim, toda a família
que se desfez qual farinha
por entre as mós antiquíssimas
de algum oculto moinho?

Onde estão os que seguiram
seus inóspitos caminhos
ou sendas que, mais propícias,
desaguaram no vazio?
 
Onde os bens, a glória, a insígnia,
se tudo o que aqui se vive
reverte em pós aos jazigos
e lá, sob o pó, esfria?
 
Poder, riqueza, honraria
são como areia dos rios:
retinem, fluem, cintilam,
e se esvaem, sem valia.

Nômades de ásperas trilhas,
andamos mientras vivimos,
até que a morte, em surdina,
nos deite as garras de harpia.

E tudo afinal se finda
sem cor, sem luz, sem martírio;
asi que cuando morimos,
de nós mesmos nos sentimos

tão distantes quanto as cinzas
de uma estrela que se extingue
na goela azul dos abismos.
E ninguém, nem Deus, nos lastima.

terça-feira, 1 de setembro de 2015