segunda-feira, 29 de junho de 2015

Ferreira Gullar



















"Não-coisa"
O que o poeta quer dizer
no discurso não cabe
e se o diz é pra saber
o que ainda não sabe.

Uma fruta uma flor
um odor que relume...
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume?

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa
e que não tem sentido?

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes
mas o gosto da fruta
só o sabes se a comes

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas
e que na boca é festa
de saliva e papilas

invadindo-te inteiro
tal do mar o marulho
e que a fala submerge
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes
de gozos, de espasmos,
vertiginoso e pleno
como são os orgasmos

No entanto, o poeta
desafia o impossível
e tenta no poema
dizer o indizível:

subverte a sintaxe
implode a fala, ousa
incutir na linguagem
densidade de coisa

sem permitir, porém,
que perca a transparência
já que a coisa ë fechada
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura — e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.


domingo, 28 de junho de 2015

Victor Loureiro, "Jardins de capela"


A capela da fábrica,
onde minha mãe se casou,
era. imagino, o labirinto
onde Deus trabalhara.
Minha melhor missa,
maior peregrinação,
foi ali,
mas do lado de fora,
nos jardins
entre a fé
e a imaginação.

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Murilo Mendes, "Equilíbrio"


Maria do Rosário,
há cinco anos que outro homem te levou ao altar.
Há cinco anos
que a vida espera no fundo do teu ventre bem desenhado.

Tua beleza definitiva
depende da sombra do filho que ainda não tens.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Eucanaã Ferraz, "Nessas horas num momento"


Transmito em nome de todos os mais profundos
sentimentos todo o apoio possível nesse momento
tão difícil nossa solidariedade afeto força
nesse momento tão difícil sinto muito minhas sinceras
condolências um beijo um abraço fraterno quero
deixar aqui meu abraço minha solidariedade
nesse momento tão difícil que a paz esteja com
meus sentimentos nessa hora palavras são insuficientes
para consolar meu pesar minha solidariedade
nunca sei o que dizer nessas horas num momento
assim a única coisa a fazer é consolar a família
não poderei ir ao velório.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

terça-feira, 23 de junho de 2015

José Paulo Paes, "À garrafa"


Contigo adquiri a astúcia
de conter e de conter-me.
Teu estreito gargalo
é uma lição de angústia.

Por translúcida pões
o dentro fora e o fora dentro
para que a forma se cumpra
e o espaço ressoe.

Até que, farta da constante
prisão da forma, saltes
da mão para o chão
e te estilhaces suicida,

numa explosão
de diamantes.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Carlito Azevedo, "Homem dentro do pesadelo"


Patas de lobo arranham
seu pescoço enquanto
intenta em vão
com socos e chutes amortecidos
pelo ar pesado
romper a membrana do sono
 

Veio rompê-la - de fora -
o dia
com suas patas de lobo

 

sábado, 20 de junho de 2015

Eucanaã Ferraz, "vou até ..."


vou até a banca de jornal, peço você.
vou à farmácia, à loja de discos, de antiguidades
às livrarias.  você.
     eis uma palavra cheia, gorda, escorregadia pernil
de natal.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

Rubem Braga,"Tarde"


E quando nós saímos era a Lua,
Era o vento caído, o mar sereno
Azul e cinza azul anoitecendo
A tarde triste das amendoeiras.

E respiramos livres das ardências
Do sol que nos levara à sombra cauta,
Tangidos pelo canto das cigarras
Dentro e fora de nós exasperadas.
 
Andamos em silêncio pela praia.
Nos corpos leves e lavados ia
O sentimento do prazer cumprido.

– Se mágoa me ficou, na despedida,
Não fez mal que ficasse, nem doesse;
Era bem doce, perto das antigas.

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Renato Rezende, "O elo perdido"


Porque eu sabia que havia um poema escondido ali
li um artigo inteiro no National Geographic
sobre arqueologia.
Na Etiópia, ingleses e nativos
descobriram ainda mais antigos restos de hominídeos
que os famosos vestígios de Lucy.

                                                            Dentes
e ossos de um indivíduo que certamente
não se considerava indivíduo, mas vagamente
sentia ser parte indivisível de um todo.
Talvez esse sentimento seja o elo perdido.

terça-feira, 16 de junho de 2015

Greta Benitez, "Convite"


Eu brinco com dragões
Todos têm seu jeito
De lidar com maldições.
No apartamento antigo
Estamos nós todos fora de perigo
Os dragões moram comigo
Difícil receber vistas
Quer vir aqui?

domingo, 14 de junho de 2015

Sônia de Barros, "Quiusa"


O sussurrar, o respirar
de folhas úmidas

falam tão mais
que o transbordamento
                                   de ondas fúrias:
lamento insano
de quem não sabe
esperar

as chuvas.

sábado, 13 de junho de 2015

Marianna Cersósimo













"Sob o papel pardo das gavetas"

Ainda que mal perguntes,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas
    (Drummond)

Ainda que mal queiras
tenho discretos prazeres pelo que lhe escapa.
Guardo ainda, profundo agrado pelas poucas coisas que sobraram
malquistas. Pelo indesejado, espontâneo.

Há pessoas que deliciam-se através de fechaduras, pelas pequenas
frestas, pelo filete de corpo que escapa aos contornos do lençol.
Vizinhos que se entretêm com o descuido do vento que sopra a cortina.

Ainda que malqueiras, não serão estes os tonéis a encher meus olhos.
São os fundos do armário, o que há guardado por baixo do papel
pardo que forra as gavetas, um rodapé solto, o bolso do casaco
nunca usado, a foto no álbum que fica por trás das outras, o que há
embaixo do travesseiro, do colchão, nas palavras escorregadias sem
permissão, no não, no grito, cheiro que ficou no banheiro quando
saiu, no papel que a borracha apagou.

Gosto pelo pouco que sobrou desarrumado nas pessoas, do pouco
que não foi produzido, do que não foi ensaiado num discurso, das
pequeninas lacunas: deliciosas como mini suspiros-puxa.

Ainda que malqueiras, teria milhagens se houvesse um voo
que levasse ao paraíso dos mini-espaços, das coisas que podem
escorregar. Tomaria conexão direta aos fundos dos armários, às
sujeiras entranhadas na unha - que denunciam muito mais do que
qualquer camisa de homem com um pouco de batom.

Ainda que malqueiras o que não lhe escapa.
O todo é que agrada.
O único fio de cabelo não pintado como todo o resto loiro, o fundo
do armário com todo ele cheio. Não interessa esvaziar.

Ainda que malqueiras, não malqueres tanto assim.
Afinal, ainda há sob o papel pardo das gavetas.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Rosane Carneiro, "Pombo"


Meu amor escorreu pela janela
formou poça ao vento
veio pombo, bebeu
voou pra longe
com ele dentro

No céu
imagino meu amor
em cada ave
que vejo

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Adriano Espínola, "Pacto"


Com as mãos, apalpa a terra.
Beija-a com os pés e passa.

Amorosa ela te espera
há milênios. Breve, te abraça.

Cláudia Collucci, "O silêncio sobre o estupro coletivo de quatro meninas"

Quatro garotas entre 15 e 17 anos saem para um passeio nos arredores da pequena cidade de Castelo do Piauí, a 190 km de Teresina.

No caminho, são abordadas por um homem armado. São brutalmente estupradas e mutiladas por esse homem e mais quatro menores.

Uma delas tem os seios cortados por uma faca e a outra sofre perfurações nas coxas.

Em seguida, são amarradas pelos punhos e pelos pés e arremessadas de um morro com altura de oito metros.

Uma das meninas, de 17 anos, morreu no último domingo (7). Teve esmagamento da face, lesões pelo pescoço e traumatismo no tórax. As outras seguem internadas no Hospital de Urgências de Teresina.

Os quatro menores que participaram da barbárie, todos com passagens anteriores pela polícia, foram apreendidos e confessaram o crime. Adão José de Souza, 40, apontado como o mentor, também está preso.

Revoltados, moradores de Castelo do Piauí queimaram pneus em frente à delegacia. O caso tem reforçado o movimento pela redução da maioridade penal. Os quatro adolescentes foram transferidos para a capital do Estado sob ameaça de linchamento. O maior de idade está na Penitenciária de Altos em ala de isolamento.

Quem são esses menores? Semianalfabetos, usuários de drogas, miseráveis, com famílias desestruturadas e com histórias de loucuras, abusos e abandono.

O caso, que aconteceu em 27 de maio, deveria ter viralizado nas redes sociais, mas, exceto no Piauí, está passando quase que despercebido no resto do país.

Pergunto-me o por que desse silêncio? Será que a vida de quatro garotas pobres do interior do Piauí vale menos do que qualquer coisa que aconteça na avenida Paulista, em São Paulo, ou na Lagoa, no Rio, para chocar as pessoas e chamar a atenção da mídia, das redes sociais, do mundo?

Há uma semana, um grupo de mulheres prestou uma homenagem às meninas de Castelo do Piauí. Espalhou flores em volta do maior pronto-socorro do Estado, onde estão internadas três das quatro garotas violentadas. Também foi criada a campanha Flores Para Elas.

Atenção, cuidado e muito amor. É disso que essas meninas precisam neste momento.


Publicado na Folha de São Paulo", em 09/06/2015.

 

segunda-feira, 8 de junho de 2015

Edison Veoca, "No beco que a cimeira não viu"


14 ANOS,
QUINZE TIROS DE FUZIL.
AS VÍSCERAS ESFOLADAS,
EXPOSTAS, COAGULANDO.
O SOL ASSISTE EM FOGO
O SONHO DE VIVER
QUE AINDA PULSA NOS MIOLOS.

domingo, 7 de junho de 2015

Ana Cristina Cesar, "Aqui, minha Filha ..."


Aqui, minha Filha, chega.
Você acaba de chegar.
Não escapa mais das quatro paredes.
Querida, nossa história terminou no hospital.
A gente não tem coragem.

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Flávio Machado, "Apontamentos sobrenaturais"


Mario Quintana de vez em quando
me acorda na manhãzinha de minha infância
e saímos por uma estrada deserta

Caminhamos lado a lado
no meio de uma explosão de cigarras
Transforma-se em meu avô inventado
contando histórias iluminadas
Depois tudo retoma sua objetividade burra

Mario Quintana esconde-se na estante
enquanto eu levanto com os pés empoeirados.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Neide Archanjo, "Amor de perdição"


Era um fluir de formas
essência grave e leve
era a ordenação do caos
a harmonia breve.

Era o poema
encostado ao muro qual flor vadia
que entre ramas se esquecia.

Era o poeta
lambendo a página baldia
em que o poema
encantado se escrevia.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Carlos Drummond de Andrade














"Amar-amaro"

porque amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?

ah PORQUE AMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos ecos
lúgubres de você mesm(o,a)
irm(ã,o) retrato espetáculo por que amou?

se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indignação do achado e aguda espotejação
da carne do conhecimento, ora veja

permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car(o,a) colega este não consola nunca de núncaras.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Ruy Espinheira Filho, "Retrato"


Eu te vejo neste retrato
como te via aos dezessete anos.
Tinhas trinta e nove, luminosamente.
Como passaste, pai! Como passamos!

Há tanto tempo já que tu partiste.
Todo um mundo se foi e vai, e vai...
Olho o teu rosto na moldura e penso
que tenho hoje idade de ser teu pai.