quinta-feira, 30 de abril de 2015

Yêda Schmaltz, "A poetisa"


Canto
o prazer e a esperança,
a loucura e a liberdade.

Cabelos soltos
véus diáfanos
minha flauta
e minha jarra

de vinho.
Que Deus inventou a uva
e Baco inventou o vinho
com seus efeitos.

(Cabelos punk
eus de afanos
minha falta
e minha farra.)

Ao coração humano
medroso, dou alegria
e coragem.

Cabelos soltos
véus diáfanos
minha flauta
e minha garra.


quarta-feira, 29 de abril de 2015

Charles Bukowski, "462-0614"


agora recebo muitas chamadas de telefone.
todas iguais.
‘é Charles Bukowski, o escritor?’
‘sim,’ eu lhes respondo.
 e eles dizem que entendem minha
escrita.
alguns deles são escritores
ou querem ser escritores
e estão em empregos estúpidos
e horríveis
e não conseguem nem encarar a sala
o apartamento
as paredes
essa noite…
querem alguém com quem possam
conversar,
não podem acreditar
que não posso ajudá-los
que não conheço as palavras.
não podem acreditar
que agora mesmo
me dobro em meu quarto
segurando minhas entranhas
e dizendo. "Jesus Jesus Jesus,
de novo não!"
eles não podem acreditar
que as pessoas mal-amadas
as ruas
a solidão
as paredes
também são minhas
e quando desligo o telefone
eles acham que escondi
o jogo.

não escrevo a partir da sabedoria.
quando o telefone toca
eu também gostaria de ouvir palavras
que pudessem aliviar um pouco alguma
dessas coisas.

é por isso que meu nome está na
lista.

Tradução de Pedro Gonzaga
 

terça-feira, 28 de abril de 2015

segunda-feira, 27 de abril de 2015

José Paulo Paes, "Elogio da memória"


O funil da ampulheta
apressa, retardando-a,
a queda
da areia.

Nisso imita o jogo
manhoso
de certos momentos
que se vão embora
quando mais queríamos
que ficassem.

domingo, 26 de abril de 2015

Miguel Sanches Neto, "Massa de detritos"


Assim como as embalagens plásticas
que depois de usadas colocamos no lixo
ou ainda como amassadas latas
que nada guardam do alucinante líquido,

do amor em cuja fonte nos saciamos
e do desejo que alimentos enganos
restou somente uma massa de detritos
que ao rio da memória seguirá poluindo.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Paulo Henriques Britto, "II º Soneto Simmétrico"


Tão limitado, estar aqui e agora,
dentro de si, sem poder ir embora,

dentro de um espaço mínimo que mal
se consegue explorar, esse minúsculo
império sem território, Macau

sempre a mercê do latejar de um músculo.
Ame-o ou deixe-o? Sim: porém amar
por falta de opção (a outra é o asco).
Que além das suas bordas há um mar

infenso a toda nau exploratória,
imune mesmo ao mais ousado Vasco.
Porque nenhum descobridor na história

(e algum tentou?) jamais se desprendeu
do cais úmido e ínfimo do eu.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Fernando Pessoa, "Bem, hoje que estou só e posso ver..."


Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto se o for, serei em vão,
 
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.

Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.

Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Vera Lúcia de Oliveira, "A poesia dói dentro de mim"


A poesia dói dentro de mim
como quando meu pai podava a parreira
eu ia vendo caírem
as folhas
eu ia vendo caírem
as folhas
e ninguém sabia
como os ramos derramavam os sons
dolorosos
  


domingo, 19 de abril de 2015

Yêda Schmaltz, "Amor de poeta"


Quando começo
eu sou terrível: tema.
Um poeta é aquele
que faz um poema
de nenhum assunto,
o que se alimenta de nada,
o que morre de medo
mas fica gratificado
com tudo.

Contudo,
não permita o início: corte.
Caia num precipício.
Melhor a morte à rima,
ao forte amor danado
de um poeta,
amor melífluo e obsceno.

E todo o amor do mundo
fica muito pequeno
se houver comparação.

(Que estou fazendo no mundo
com este nome alemão,
este ar desconfiado
e essa cara de quem
vê cara, não vê coração?)
 

sábado, 18 de abril de 2015

Sônia de Barros












"Tempo de espera"

De quando em quando
aparece um cotoco
dependurado na carne
de minhas costas,

cravado no oco
de cada lateral;

doloroso vestígio
das asas que,
às vezes,
fogem de mim.

sexta-feira, 17 de abril de 2015

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Ivan Junqueira, "Cena dominical"


Meu pai, absorto, à cabeceira,
rodeado de fármacos e receitas,
mira o vazio de sua vida inteira
e degusta o que mais o deleita:
o pôquer, os cavalos, a roleta,
a garrafa de tinto na mesa,
o charuto de módico preço,
a baforada lenta e espessa
 que se enovela entre os esguios dedos.

O almoço de domingo vai a meio,
sem brindes ou inúteis atropelos.
Na travessa, as usuais guloseimas
que minha mãe prepara com esmero.
fala-se pouco. Uma úmida tristeza
embebe os talheres, molha as paredes
da acanhada sala burguesa.
Após o café, meu pai, sorrateiro,
conta as raras cédulas da carteira.
E sai. Chove. Ágil, ele se esgueira
por entre as gotas que o golpeiam.

Quase em frente, o hipódromo o espreita:
os potros, a lama da pista de areia,
a multidão, os chapéus de feltro,
a dupla, o placê, o colorido das jaquetas.
Meu pai aposta. Uma, duas, muitas vezes.

E deixa ali o seu último dinheiro.

quarta-feira, 15 de abril de 2015

Ana Cristina Cesar, "Fagulha"


Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.
 

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Saulo Ramos, "Poema a meu pai"


Meu pai, eu sou a tua ressureição:
herdei, de ti, feições e sentimentos,
e trago na alma o que tu tens no fundo.
No caminharmos para a perfeição
tenho a impressão de que, certo momento,
fomos um só, na criação do mundo.

Viemos de geração em geração,
no mesmo sangue; ao mesmo amor ardente,
multiplicados a nos renascer,
sentindo a cada nova criação
o outro querendo ser eternamente
o que não teve tempo de ser.

Somos tão nós, que o tempo nos reflete
como dois incansáveis andarilhos
através da velhice e mocidade...
... e é tão imenso o amor que nos repete
que nasceremos juntos em meus filhos
e chegaremos um, na eternidade.

domingo, 12 de abril de 2015

Emílio Moura, "Três tempos"


Futuro:
Desassossego no escuro.
Medo.

Presente:
Revoada de nada,
simplesmente.

E tu, passado:
que fizeste deste
coração frustrado?

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Charles Bukowski













"Pássaro azul"

há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.


há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.


há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?


há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.


depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?



Desconheço o nome do tradutor.



quinta-feira, 9 de abril de 2015

Raimundo Gadelha, "Escultura"


Mutilados os braços,
os pés tentarão, passo a passo,
imprimir uma emoção
Decepadas as pernas,
o caminho não terá sido em vão
Cortada a cabeça,
por instantes ainda pulsará o coração
e enterrado o coração e todo o resto
restará ainda e para sempre
a marca cósmica e imperecível
de tudo o que se tentou ser
E numa fração de segundo
o Ser simplesmente será
Puro
Rápido
Eterno.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Billie Holiday, "Fine and mellow"





"Fine and Mellow" foi escrita pela própria Billie.
No vídeo, ela canta acompanhada por:
Sax-tenor : Ben Webster, Lester Young e Coleman Hawkins
Sax-barítono : Gerry Mulligan
Trombone: Vic Dickenson
Pistom : Roy Eldridge e Doc Cheatham
Guitarra : Danny Barker
Baixo : Milt Hinton
Piano : Mal Waldron
Bateria: Osie Johnson

Anita Malfatti, "Tropical"


terça-feira, 7 de abril de 2015

Caio Fernando de Abreu, "Fever 77 ⁰ "


Deixa-me entrelaçar margaridas
nos cabelos de teu peito.
Deixa-me singrar teus mares
mais remotos
com minha língua em brasa.

Quero um amor de suor e carne
agora:

enquanto tenho sangue.

Mas deixa-me sangrar teus lábios
com a adaga de meus dentes.
Deixa-me dilacerar teu flanco
mais esquivo
na lâmina de minhas unhas.

Quero um amor de faca e grito
agora:

enquanto tenho febre.
 

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Maria do Rosário Pedreira, "Se o vires..."


Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
 
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se
o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não de mais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,
 
diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.
 
 

sábado, 4 de abril de 2015

Luís de Camões, "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades..."


Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soia.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Ivan Junqueira











"Despedida"

Estamos indo embora. Sobre o piso de ardósia,
por entre caules e corolas que exalam um perfume exótico,
os gatos deslizam. São espíritos leves e sóbrios,
com suas patas de veludo, silenciosas,
que arranham a lombada dos livros e o verniz dos móveis.
Os tapetes abafam seus passos ociosos,
como se faz quando se acolhem os órfãos.

Doze anos se passaram, e estamos indo embora.
A brisa do mar, com seus úmidos braços, nos envolve
e empurra para um outro promontório,
uma outra dimensão de nossa breve história,
de que somos, se tanto, transitórios hóspedes,
peças de um tabuleiro onde o tempo se desloca,
alheio à inútil engrenagem dos relógios,
cujas horas se dissolvem numa névoa incorpórea.

Tanto aqui se escreveu em verso e prosa:
romances, elegias, baladas, novelas e toda uma prole
de rascunhos que iam da perífrase ao apólogo.
Tanto aqui se ouviram o lamento de um fagote,
uma ária de ópera, a lenta pulsação de um órgão,
a inquieta truta de um quinteto de cordas,
essa insistente música que ecoa na memória
e que não pode (nem quer ) ir-se embora.
Como estancar as vozes e os acordes
do Réquiem em que Mozart brindou à própria morte?
Como esquecer, Palestrina, teu Kyrie, teu Sanctus, teu Glória?
Como calar esse jorro de notas, essa clave de sol
na partitura de uma noite em que faz frio e chove?

Estamos indo embora. Passem o trinco nas portas
r tranquem as janelas pelas quais rompia a aurora.
Apaguem-se a lua, as estrelas e o monólogo
do sabiá na varanda, as nervosas
mãos do vento a sacudir os vitrais da abóbada.
Levem tudo: quadros, taças, santos barrocos, oratórios,
todo esse insólito e cediço espólio.
Bebeu-se aqui o álcool da vida até o último gole.
Não se esqueçam da arca que ficou no sótão.
Desliguem a luz (e o gás, senão tudo explode).
Que fique um resto como esmola. Paguem um óbolo
ao barqueiro que nos leva rio afora.
                                               Estamos indo embora.


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Roberto Piva




















"Stenamina boat" *
                                                                                 
                                               Prepara tu esqueleto para el aire
                                                              Garcia Lorca

Eu queria ser um anjo de Piero della Francesca
Beatriz esfaqueada num beco escuro
Dante tocando piano ao crepúsculo
eu penso na vida sou reclamado pela contemplação
olho desconsolado o contorno das coisas copulando no caos
Eu reclamo uma lenda instantânea para o meu Mar Morto
Tempo e espaço pousam no meu antebraço como um ídolo
há um osso carregando uma dentadura
Eu vejo Lautréamont num sonho nas escadas de Santa Cecília
ele me espera no largo do Arouche no ombro de um santuário
hoje pela manhã as árvores estavam em Coma
meu amor cuspia brasas nas bundas dos loucos
havia tinteiros
medalhas esqueletos vidrados flocos dálias
          explodindo no cu ensanguentado dos órfãos
meninos visionários arcanjos de subúrbio entranhas em êxtases alfinetados
          nos mictórios atômicos
minha loucura atinge a extensão de uma alameda
as árvores lançam panfletos contra o céu cinza


O título do poema - Stenamina boat - poderia ser traduzido como "Barco de stenamina", sendo que stenamina é um tipo de droga, uma anfetamina.