segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Miguel Torga, "Ressurreição"


Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão lhe apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.

Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia outono.

Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais,
Descansavam apenas um momento.

E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza de um rebento,
Na seiva do poema que sonhou.


domingo, 29 de dezembro de 2013

José Gomes Ferreira, "Quando eu morrer..."


Quando eu morrer não compliquem o mistério
Com pios de coruja.
Nem me levem para o cemitério
Da Morte da Nuvem Suja.

Queimem-me, queimem-me numa pira
Ao som do Sol azul
Para que ninguém simule
Lágrimas de mentira.

Que bom ver subir no ar,
Nitidamente, a prumo,
Este charco a sonhar
Uma nuvem de fumo.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Mário de Sá-Carneiro, "Estátua Falsa"

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Américo Cortês Pinto, "Aquário"


Para que serve a Inquietação? Oh, alma inquieta
E em fogo!
Peixe vermelho de aquário
Que tem o mundo
sem fim
Só na ilusão dos meus olhos!
Tenta varar a vida lado a lado.
E corta em frente
O aquário transparente...

Mas anda à roda, à roda,
Teimosamente à roda,
Inutilmente à roda.
Desesperado e iludido,
- Porque o mundo, adonde mora
Seu sonho, fica de fora
Do seu aquário de vidro...

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Alexei Bueno, "Tanto por nós..."


Tanto por nós os deuses se interessam
Quanto nós pelos vermes detestáveis
Que rondam nossos pés. Quase os não vemos,
         E, vendo-os, os matamos.

Portanto, nunca aos deuses atribua,
Mortal, o teu claro dia, ou teu suplício,
Já que ambos, quando vêm, não nos vêm deles,
         E nem do fado ao menos.

Pois este é a própria ausência, e a ela se curvam
Os imortais, e o mundo, e os céus, e os homens,
E é bem por nossa sorte que os do olimpo
         Não reinam sobre nós.

Pois se assim, como julga o vulgo, fosse
Desgraças muito mais nós sofreríamos
Pois em nós os de lá descontariam
        Seu tédio, ou sua dor.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Armindo Rodrigues, "Liberdade"


Ser livre é querer ir e ter um rumo
E ir sem medo,
Mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
Transformar o fumo
Do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
Só ver portas fechadas e pessoas hostis
E arrancar teimosamente do caminho
Sonhos de sol
Com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
E, mesmo assim,
Só de pensar gritar
Gritar.
E só de pensar ir
Ir e chegar ao fim.

domingo, 22 de dezembro de 2013

sábado, 21 de dezembro de 2013

Heinrich Heine, "Os grandes deuses..."


Os grandes deuses ora dormem,
Envoltos numa nuvem cinza;
Escuto como roncam forte,
A tempestade se aproxima.

Que tempo atroz! A tempestade
Quer destroçar a embarcação -
No vento e no escarcéu quem há de
Pôr sela, arreio e bridão?

Não tenho culpa se a procela
Empurra os barcos para o fundo,
Então me enrosco nas cobertas
E, como um deus, enfim eu durmo.

Tradução de André Vallias

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Thomas Hoccleve (1369-1426), "Lamento"


Depois que a colheita reuniu as espigas e molhos,
E que a estação trigueira da festa de S. Miguel
Chegou, começando a roubar às árvores as suas folhas
Que verdes tinham sido e de vigorosa frescura,
E que debruando-se de cor amarela
Morreram e caíram sob os nosso pés,
Tal mudança, enterrada no meu coração, criou raízes.

Tradução de Cecília Rego Pinheiro

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Bruno Tolentino, "Baixa os olhos à terra ..."


Baixa os olhos à terra que trocaste
pelo ouro de um rosto: veio o outono
que haveria de vir a cada haste
- alta, ereta, solar - perdeu o sono,

as pétalas pesadas de abandono
já mal sustêm a pose que imitaste;
baixa os olhos também e pede ao sono,
às pétalas do sono, que te baste

essa consolação de aparentar-te,
tu também, resignado, á flor solar
que baixa o rosto quando o dono parte.

Para não presumir do teu lugar
no reino iluminado, aprende a arte
do girassol e vai baixando o olhar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Natália Correia, "Rebis"


Oh a mulher como é côncava
de teclas ter no abdómen
de sua porção de seda
ser o curso do rio homem

como é mina espadanar de água
na cama abobadada de homem
gargalhada de lustre se sentada
dique de nuvens estar de dólmen*!

Oh o homem como é ângulo
aberto de procurar
o sítio onde nasce o oiro
na salmoura da mulher mar

como é cúpula de copular
nadador de braçadas de mirto
como é nado de a nado formar
o quadrado da mulher círculo!

Oh os dois como se fundem
na preia-mar dos lençóis
despidos como fogo e água
deus de dois ventres ferozes
e quatro olhos de fava!

* Dólmen - s.m. Monumento pré-histórico formado por uma grande pedra achatada, colocada sobre outras em posição vertical.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

domingo, 15 de dezembro de 2013

Alexei Bueno, "Um hábito"


Esta roupa mal cortada,
Curta aqui, ali comprida,
Aqui frouxa, ali apertada,
Esta roupa idiota é a vida.

Se a enlamearem, se a rasgarem,
Se furar muito depressa,
Que dirão os que a envergarem
Se foi ganha sem promessa?

Suja e incomoda a portamos,
Que se esgarce toda, que arda!
Vai ao lixo, e ao lixo vamos
Que ora é próximo, ora tarda.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Antonio Cicero, "Solo da Paixão"

O solo da paixão não dura mais
que um dia antes de afundar, não mais
que esta noite ou esta noite e um dia
e o clarão da noite antes de amargar.
Um dia solar eu vou lhe entregar;
Que ele sequestre o mundo por um dia
(um dia só será que já vicia?)
Depois devolva tudo: terra  céu  e  mar.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Cecília Meireles, "Canção"


Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto.

Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona alegria na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Nuno de Sampayo, " Conheço as partes altas..."


Conheço as partes altas da minha alma
Onde o silêncio chove das horas pálidas,
O meu jardim morre, o Teu jardim começa,
A Tua eternidade flutua como uma bandeira
E as Tuas aves tem espaço para voos sem orlas.
Nesta fronteira as brisas desfolham as florestas
E ouve-se o rumor do grande país longínquo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Carlos Maria de Araújo, "Porque nunca foste nostalgia..."


porque nunca foste nostalgia

porque nunca foste insônia
febre de aventura
navio

porque nunca foste a lua
vento nocturno
agonia

porque nunca foste desatino
luzir de faca
cilício

porque és penumbra e quietude
capela nua
vigília

és tu esta poesia
minha amiga

domingo, 8 de dezembro de 2013

Miguel Torga













"Prece"

Senhor, deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo cumprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.

Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição:
Onde era sim, digo não.
Onde era não, digo sim.
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.

Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro dum inimigo...
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Florbela Espanca, "Ódio?"


Ódio por ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo encanto...

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Como um soturno e enorme Campo Santo!

Ah! Nunca mais amá-lo é já o bastante!
Quero senti-lo outrora, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por ele? Não... não vale a pena.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Georg Trakl, "Canção ao anoitecer"

 
Paridos da sombra de um sopro
caminhamos no abandono,
perdidos no eterno
como o holocausto que ignora o seu destino.
 
Nada nos pertence, como acontece ao mendigo,
tontos, qual cegos frente ao pórtico cerrado
nós espreitamos o silêncio
onde se perde o nosso sussurro.
 
Somos peregrinos sem destino,
nuvens que o vento dispersou,
flores tremendo no mortífero frio
a espera da mão que as ceifará.
 
Compreensão só é dada àqueles que menosprezam a felicidade.

Tradução de Roswitha Kempf

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

António Gomes Leal, "O visionário ou som e cor III".


                                       O vermelho deve ser como
                                       o som duma trombeta...
                                       Um cego

Alucina-me a Cor! – A Rosa é como a Lira,
A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
E é já velha a união, a núpcia sagrada,
Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira,
A teatral camélia, a branca enfastiada,
Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
Como a perdida cor dalguma flor que expira...

Há plantas ideais dum cântico divino,
Irmãs do oboé, gémeas do violino,
Há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.
E o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
- Tem notícias marciais, soa como um clarim.


António Gomes Leal (1848-1921) nasceu e morreu em Lisboa. Durante a juventude tornou-se poeta e levou vida boêmia. Com a morte da mãe em 1910, converteu-se ao catolicismo a pedido dela, mas entregou-se ao alcoolismo e à mendicância. Vivia da caridade alheia, dormindo ao relento em bancos de jardim. No final da vida, um grupo de escritores lançou um apelo público para que o Estado Português lhe atribuísse uma pensão, o que foi conseguido, apesar de irrisória.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Cantiga de Amigo, de Juião Bolseiro, "Estas noites tão longas..."


- Esta postagem é dedicada a todos que sofrem de insônia.

Estas noites tão longas que Deus fez num grave dia
para mim, que não as durmo, por que não as fazia
              no tempo em que meu amigo
              costumava falar comigo?

Porque Deus as fez tão grandes, não posso eu dormir, coitada,
e como são imensas, eu as quisera noutra época,
              no tempo em que meu amigo
              costumava falar comigo.

Porque Deus as fez tão grandes, sem medida desiguais,
e eu dormi-las não posso, por que não as fez 
              no tempo em que meu amigo
              costumava falar comigo?


Juião Bolseiro foi poeta na corte portuguesa no século XIII.

Cantiga de Amigo na lírica medieval galego-portuguesa era uma composição breve, feita por um homem mas como se fosse escrita por uma mulher apaixonada, porque mulheres nessa época não podiam ser poetas.

Nelas, o "amigo" referenciado nas Cantigas tem o sentido de pretendente, esposo, namorado ou amante.

Para melhor compreensão da sensualidade e erotismo da cantiga, eu tentei, de forma amadora, atualizar o vocabulário e a gramática, que originalmente seriam assim:

"Aquestas noites tam longas que Deus fez em grave dia
por mim, porque as nom dórmio, e por que as nom fazia
              no tempo que meu amigo
              soía falar comigo.

Porque as fez Deus tam grandes nom posso eu dormir, coitada,
e de como som sobejas, quisera-m'outra vegada
             no tempo que meu amigo
             soía falar comigo.

Porque as Deus fez tam grandes, sem mesura desiguaes,
e as dormir nom posso, por que as nom fez ataes
             no tempo que meu amigo
             soía falar comigo?"

A disposição espacial dos versos e estrofes na apresentação da Cantiga foi a mesma que Eugénio de Andrade utilizou na sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa.