segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Miguel Torga, "Ressurreição"


Porque a forma das coisas lhe fugia,
O poeta deitou-se e teve sono.
Mais nenhuma ilusão lhe apetecia,
Mais nenhum coração era seu dono.

Cada fruto maduro apodrecia;
Cada ninho morria de abandono;
Nada lutava e nada resistia,
Porque na cor de tudo havia outono.

Só a razão da vida via mais:
Terra, sementes, caules, animais,
Descansavam apenas um momento.

E o vencido poeta despertou
Vivo como a certeza de um rebento,
Na seiva do poema que sonhou.


domingo, 29 de dezembro de 2013

José Gomes Ferreira, "Quando eu morrer..."


Quando eu morrer não compliquem o mistério
Com pios de coruja.
Nem me levem para o cemitério
Da Morte da Nuvem Suja.

Queimem-me, queimem-me numa pira
Ao som do Sol azul
Para que ninguém simule
Lágrimas de mentira.

Que bom ver subir no ar,
Nitidamente, a prumo,
Este charco a sonhar
Uma nuvem de fumo.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Mário de Sá-Carneiro, "Estátua Falsa"

Só de ouro falso os meus olhos se douram;
Sou esfinge sem mistério no poente.
A tristeza das coisas que não foram
Na minha'alma desceu veladamente.

Na minha dor quebram-se espadas de ânsia,
Gomos de luz em treva se misturam.
As sombras que eu dimano não perduram,
Como Ontem, para mim, Hoje é distância.

Já não estremeço em face do segredo;
Nada me aloira já, nada me aterra:
A vida corre sobre mim em guerra,
E nem sequer um arrepio de medo!

Sou estrela ébria que perdeu os céus,
Sereia louca que deixou o mar;
Sou templo prestes a ruir sem deus,
Estátua falsa ainda erguida ao ar...

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Américo Cortês Pinto, "Aquário"


Para que serve a Inquietação? Oh, alma inquieta
E em fogo!
Peixe vermelho de aquário
Que tem o mundo
sem fim
Só na ilusão dos meus olhos!
Tenta varar a vida lado a lado.
E corta em frente
O aquário transparente...

Mas anda à roda, à roda,
Teimosamente à roda,
Inutilmente à roda.
Desesperado e iludido,
- Porque o mundo, adonde mora
Seu sonho, fica de fora
Do seu aquário de vidro...

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Alexei Bueno, "Tanto por nós..."


Tanto por nós os deuses se interessam
Quanto nós pelos vermes detestáveis
Que rondam nossos pés. Quase os não vemos,
         E, vendo-os, os matamos.

Portanto, nunca aos deuses atribua,
Mortal, o teu claro dia, ou teu suplício,
Já que ambos, quando vêm, não nos vêm deles,
         E nem do fado ao menos.

Pois este é a própria ausência, e a ela se curvam
Os imortais, e o mundo, e os céus, e os homens,
E é bem por nossa sorte que os do olimpo
         Não reinam sobre nós.

Pois se assim, como julga o vulgo, fosse
Desgraças muito mais nós sofreríamos
Pois em nós os de lá descontariam
        Seu tédio, ou sua dor.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Armindo Rodrigues, "Liberdade"


Ser livre é querer ir e ter um rumo
E ir sem medo,
Mesmo que sejam vãos os passos.
É pensar e logo
Transformar o fumo
Do pensamento em braços.
É não ter pão nem vinho,
Só ver portas fechadas e pessoas hostis
E arrancar teimosamente do caminho
Sonhos de sol
Com fúrias de raiz.
É estar atado, amordaçado, em sangue, exausto
E, mesmo assim,
Só de pensar gritar
Gritar.
E só de pensar ir
Ir e chegar ao fim.

domingo, 22 de dezembro de 2013

sábado, 21 de dezembro de 2013

Heinrich Heine, "Os grandes deuses..."


Os grandes deuses ora dormem,
Envoltos numa nuvem cinza;
Escuto como roncam forte,
A tempestade se aproxima.

Que tempo atroz! A tempestade
Quer destroçar a embarcação -
No vento e no escarcéu quem há de
Pôr sela, arreio e bridão?

Não tenho culpa se a procela
Empurra os barcos para o fundo,
Então me enrosco nas cobertas
E, como um deus, enfim eu durmo.

Tradução de André Vallias

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Thomas Hoccleve (1369-1426), "Lamento"


Depois que a colheita reuniu as espigas e molhos,
E que a estação trigueira da festa de S. Miguel
Chegou, começando a roubar às árvores as suas folhas
Que verdes tinham sido e de vigorosa frescura,
E que debruando-se de cor amarela
Morreram e caíram sob os nosso pés,
Tal mudança, enterrada no meu coração, criou raízes.

Tradução de Cecília Rego Pinheiro

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Bruno Tolentino, "Baixa os olhos à terra ..."


Baixa os olhos à terra que trocaste
pelo ouro de um rosto: veio o outono
que haveria de vir a cada haste
- alta, ereta, solar - perdeu o sono,

as pétalas pesadas de abandono
já mal sustêm a pose que imitaste;
baixa os olhos também e pede ao sono,
às pétalas do sono, que te baste

essa consolação de aparentar-te,
tu também, resignado, á flor solar
que baixa o rosto quando o dono parte.

Para não presumir do teu lugar
no reino iluminado, aprende a arte
do girassol e vai baixando o olhar.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Natália Correia, "Rebis"


Oh a mulher como é côncava
de teclas ter no abdómen
de sua porção de seda
ser o curso do rio homem

como é mina espadanar de água
na cama abobadada de homem
gargalhada de lustre se sentada
dique de nuvens estar de dólmen*!

Oh o homem como é ângulo
aberto de procurar
o sítio onde nasce o oiro
na salmoura da mulher mar

como é cúpula de copular
nadador de braçadas de mirto
como é nado de a nado formar
o quadrado da mulher círculo!

Oh os dois como se fundem
na preia-mar dos lençóis
despidos como fogo e água
deus de dois ventres ferozes
e quatro olhos de fava!

* Dólmen - s.m. Monumento pré-histórico formado por uma grande pedra achatada, colocada sobre outras em posição vertical.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

domingo, 15 de dezembro de 2013

Alexei Bueno, "Um hábito"


Esta roupa mal cortada,
Curta aqui, ali comprida,
Aqui frouxa, ali apertada,
Esta roupa idiota é a vida.

Se a enlamearem, se a rasgarem,
Se furar muito depressa,
Que dirão os que a envergarem
Se foi ganha sem promessa?

Suja e incomoda a portamos,
Que se esgarce toda, que arda!
Vai ao lixo, e ao lixo vamos
Que ora é próximo, ora tarda.

sábado, 14 de dezembro de 2013

Antonio Cicero, "Solo da Paixão"

O solo da paixão não dura mais
que um dia antes de afundar, não mais
que esta noite ou esta noite e um dia
e o clarão da noite antes de amargar.
Um dia solar eu vou lhe entregar;
Que ele sequestre o mundo por um dia
(um dia só será que já vicia?)
Depois devolva tudo: terra  céu  e  mar.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Cecília Meireles, "Canção"


Não te fies do tempo nem da eternidade
que as nuvens me puxam pelos vestidos,
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!

Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime,
ó lábio, limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te escuto.

Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona alegria na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Nuno de Sampayo, " Conheço as partes altas..."


Conheço as partes altas da minha alma
Onde o silêncio chove das horas pálidas,
O meu jardim morre, o Teu jardim começa,
A Tua eternidade flutua como uma bandeira
E as Tuas aves tem espaço para voos sem orlas.
Nesta fronteira as brisas desfolham as florestas
E ouve-se o rumor do grande país longínquo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Carlos Maria de Araújo, "Porque nunca foste nostalgia..."


porque nunca foste nostalgia

porque nunca foste insônia
febre de aventura
navio

porque nunca foste a lua
vento nocturno
agonia

porque nunca foste desatino
luzir de faca
cilício

porque és penumbra e quietude
capela nua
vigília

és tu esta poesia
minha amiga

domingo, 8 de dezembro de 2013

Miguel Torga













"Prece"

Senhor, deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo cumprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.

Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição:
Onde era sim, digo não.
Onde era não, digo sim.
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.

Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro dum inimigo...
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Florbela Espanca, "Ódio?"


Ódio por ele? Não... Se o amei tanto,
Se tanto bem lhe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo encanto...

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Como um soturno e enorme Campo Santo!

Ah! Nunca mais amá-lo é já o bastante!
Quero senti-lo outrora, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!

Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda.
Ódio por ele? Não... não vale a pena.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Georg Trakl, "Canção ao anoitecer"

 
Paridos da sombra de um sopro
caminhamos no abandono,
perdidos no eterno
como o holocausto que ignora o seu destino.
 
Nada nos pertence, como acontece ao mendigo,
tontos, qual cegos frente ao pórtico cerrado
nós espreitamos o silêncio
onde se perde o nosso sussurro.
 
Somos peregrinos sem destino,
nuvens que o vento dispersou,
flores tremendo no mortífero frio
a espera da mão que as ceifará.
 
Compreensão só é dada àqueles que menosprezam a felicidade.

Tradução de Roswitha Kempf

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

António Gomes Leal, "O visionário ou som e cor III".


                                       O vermelho deve ser como
                                       o som duma trombeta...
                                       Um cego

Alucina-me a Cor! – A Rosa é como a Lira,
A Lira pelo tempo há muito engrinaldada,
E é já velha a união, a núpcia sagrada,
Entre a cor que nos prende e a nota que suspira.

Se a terra, às vezes, brota a flor que não inspira,
A teatral camélia, a branca enfastiada,
Muitas vezes, no ar, perpassa a nota alada
Como a perdida cor dalguma flor que expira...

Há plantas ideais dum cântico divino,
Irmãs do oboé, gémeas do violino,
Há gemidos no azul, gritos no carmesim...

A magnólia é uma harpa etérea e perfumada.
E o cacto, a larga flor, vermelha, ensanguentada,
- Tem notícias marciais, soa como um clarim.


António Gomes Leal (1848-1921) nasceu e morreu em Lisboa. Durante a juventude tornou-se poeta e levou vida boêmia. Com a morte da mãe em 1910, converteu-se ao catolicismo a pedido dela, mas entregou-se ao alcoolismo e à mendicância. Vivia da caridade alheia, dormindo ao relento em bancos de jardim. No final da vida, um grupo de escritores lançou um apelo público para que o Estado Português lhe atribuísse uma pensão, o que foi conseguido, apesar de irrisória.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Cantiga de Amigo, de Juião Bolseiro, "Estas noites tão longas..."


- Esta postagem é dedicada a todos que sofrem de insônia.

Estas noites tão longas que Deus fez num grave dia
para mim, que não as durmo, por que não as fazia
              no tempo em que meu amigo
              costumava falar comigo?

Porque Deus as fez tão grandes, não posso eu dormir, coitada,
e como são imensas, eu as quisera noutra época,
              no tempo em que meu amigo
              costumava falar comigo.

Porque Deus as fez tão grandes, sem medida desiguais,
e eu dormi-las não posso, por que não as fez 
              no tempo em que meu amigo
              costumava falar comigo?


Juião Bolseiro foi poeta na corte portuguesa no século XIII.

Cantiga de Amigo na lírica medieval galego-portuguesa era uma composição breve, feita por um homem mas como se fosse escrita por uma mulher apaixonada, porque mulheres nessa época não podiam ser poetas.

Nelas, o "amigo" referenciado nas Cantigas tem o sentido de pretendente, esposo, namorado ou amante.

Para melhor compreensão da sensualidade e erotismo da cantiga, eu tentei, de forma amadora, atualizar o vocabulário e a gramática, que originalmente seriam assim:

"Aquestas noites tam longas que Deus fez em grave dia
por mim, porque as nom dórmio, e por que as nom fazia
              no tempo que meu amigo
              soía falar comigo.

Porque as fez Deus tam grandes nom posso eu dormir, coitada,
e de como som sobejas, quisera-m'outra vegada
             no tempo que meu amigo
             soía falar comigo.

Porque as Deus fez tam grandes, sem mesura desiguaes,
e as dormir nom posso, por que as nom fez ataes
             no tempo que meu amigo
             soía falar comigo?"

A disposição espacial dos versos e estrofes na apresentação da Cantiga foi a mesma que Eugénio de Andrade utilizou na sua Antologia Pessoal da Poesia Portuguesa.


sábado, 30 de novembro de 2013

Vinícius de Moraes, "Poética II"


Com as lágrimas do tempo
E a cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo
(Um templo sem Deus).

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Antonio Cicero, "Stromboli"*


Dormes,
Belo.
E eu não, eu velo
Enquanto voas ou velejas
E inocente exerces teu império.
Amo: o que é que tu desejas?
Pois sou a noite, somos
Eu poeta, tu proeza
E de repente exclamo:
Tanto mistério é,
Tanta beleza.


A ilha de Stromboli, no mar Mediterrâneo, foi onde Éolo, o Deus dos Ventos, deu a Ulisses um saco de couro onde estavam presos todos os ventos, exceto o "vento oeste", que o levaria de volta à sua ilha de Ítaca.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

José Paulo Paes












"Poética"

Não sei palavras dúbias. Meu sermão
chama ao lobo verdugo e ao cordeiro irmão.

Com duas palavras fraternas, cumplicio
A ilha prometida à proa do navio.

A posse é-me aventura sem sentido.
Só compreendo o pão dividido.

Não brinco de juiz, não me disfarço em réu.
Aceito meu inferno, mas falo do meu céu.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Hilda Hilst, "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos"

O conjunto dos "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos" são vinte e um poemas onde Hilda Hilst se dirige a Deus.
Ela tem uma leitura cristã, crê nele, mas é uma relação contraditória, onde convivem a devoção, a dúvida, a sedução e a heresia.
Os poemas foram publicados pela primeira vez em 1984.

Farei uma seleta de certos versos de cada um dos vinte e um poemas.


I
..........
Pés burilados
Luz-alabastro
Mandou seu filho
Ser trespassado

Nos pés de carne
Nas mãos de carne
No peito vivo. De carne.

Cuidado.
............

II
.................
Se tu é água
É tocha. É máquina
Poderosa se és rocha.

Um olfato que aspira.
Teu rastro. Um construtor
De finitudes gastas.

É Deus.
Um sedutor nato.
..........

III
................
Caio sobre teu colo.
Me retalhas.
Quem sou?
Tralhas, do teu divino humor.
.................

IV  (integral)

Doem-te as veias?
Pulsaram porque fizeste
Do barro os homens.
E agora dói-te a razão?
Se me visses
Panelas, cuias

E depois de prontas
Me visses
Aquecê-las a um ponto
A um grande fogo
Até fazê-as desaparecer

Dirias que sou demente
Louca?
Assim fizeste aos homens.

Me deste a vida e a morte
Não te dói o peito?
Eu preferia
A grande noite negra
A esta luz irracional da Vida.

V (integral)

Para um Deus, que singular prazer
Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes
Ser o Senhor de um breve nada: o homem.
Equação sinistra
Tentando parecença contigo,. Executor.

O Senhor do meu canto, dizem?  Sim.
Mas apenas enquanto dormes.
Enquanto dormes, eu tento meu destino.
Do teu sono
Depende meu verso minha vida minha cabeça.

Dorme, inventado imprudente menino.
Dorme. Para que o poema aconteça.

VI

Se mil anos vivesse
Mil anos te tomaria.
Tu
E tua cara fria.
........................
Teu vício de palavras.
Teu silêncio de facas.
As nuas molduras
de tua alma.
...........................
Imagina-te a mim
A teu lado inocente
A mim, e a essa mistura
de piedosa, erudita, vadia
E tão indiferente.

Tu sabes.
Poeta buscando altura
nas tuas coxas frias.
...............

VII (integral)

É rígido e mata
Com seu corpo estaca.
Ama mas crucifica.

O texto é sangue
E hidromel.
E sedoso e tem garra
E lambe teu esforço

Mastiga teu gozo
Se tens sede, é fel.

Tem tríplices caninos.
Te trespassa o rosto
E chora menino
Enquanto agonizas.

É pai, filho, passarinho.

Ama. Pode ser fino
Como um inglês.
É genuíno. Piedoso.
Quase sempre assassino.
É Deus.

VIII (integral)

É neste mundo que te quero sentir
É o único que sei. O que me resta.
Dizer que vou te conhecer a fundo
Sem as bênçãos da carne, no depois,
Me parece a mim magra promessa.
Sentires da alma? Sim. Pode, ser prodigiosos.
Mas tu sabes da delícia da carne.
Dos encaixes que inventaste. De toques.
Do formoso das hastes. Das corolas.
Vês como fico pequena e tão pouco inventiva?
Haste. Corola. São palavras róseas. Mas sangram.

Se feitas de carne.

Dirás que o humano desejo
Não te percebe as fomes. Sim, meu Senhor,
Te percebo. Mas deixa-me amar a ti, neste texto
Com os enlevos
De uma mulher que só sabe o homem.

IX

Poderias ao menos tocar
As ataduras da tua boca?
Panos de linho luminescentes
Com que magoas
Os que te pedem palavras?
....................
Me permitirias te sentir a língua
Essa peça que alisa nossas nucas
E fere rubra
Nossas Humanas delicadas espessuras?
.................
Poderia, meu Deus, me aproximar?
Tu, na montanha.
Eu no meu sonho
de estar
Nos resíduos dos teus sonhos?

X

.......................
Busco tua boca de veios
Adentro-me nas emboscadas
vazia te busco
os meios.
Te fechas, teia de sombras
Meus Deus, te guardas.

A quem te procura, calas,
A mim que pergunto escondes
Tua casa e tuas estradas.
Depois trituras. Corpo de amantes
E amadas.

E buscas
A quem nunca te procura.

XI (integral)

Sobem-me as águas. Sobem-me as fúrias.
Fartas me sobem dor e palavras.
De vidro, nozes, de vinhas, me sabem dores
Tão tardas, tão carecentes.

Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste
Na terra que preparei, nem nas calçadas
Da casa? Me vês e me pensas caça?
Ai, não. Não me pensas. Eu sim, nas noites

Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.

XII

Estou sozinha se penso que tu existes.
Não tenho dados de ti, nem tenho tua vizinhança.
E igualmente sozinha se tu não existes.
De que adiantam
Poemas ou narrativas buscando

Aquilo, que se não é, não existe
Ou se existe, então se esconde
Em sumidouros e cimos, nomenclaturas

Naquelas não evidências
De matemática pura? É preciso conhecer
com precisão para mar? Não te conheço.
....................................

XIII

....................
Alguém me diz que esse alguém
eu gritava, a mim se parecia.
Mas era mais menina, percebes?
De certo modo mais velha
Como alguém que voltando de guerrilhas
Mulher das matas, filha das ideias.
......................

XIV (integral)

Se te ganhasse, meu Deus, minh'alma se esvaziaria?
Se a mim me aconteceu com os homens, por que não com Deus?
De início as lavas do desejo, e rouxinóis no peito.
E aos poucos lassidão, um desgosto de beijos, um esfriar-se

Um pedir que se fosse, fartada de carícias.
Se te ganhasse, que coisas ainda desejaria minh'alma?
Se ficasses? Que luz seria em mim mais luminosa?
Que negrume mais negro?

Não haveria mais nem sedução, nem ânsias.
E partirias. Em vazia de ti porque tão cheia.
Tu, em abastanças do sentir humano, de novo dormirias.

XV (integral)

Desenho um touro na seda.
Olhos de um ocre espelhado
O pelo negro, faustoso
Seduzo meu deus montado
Sobre este touro.

Desenhas Deus? Desenho o nada
Sobre este grande costado.
Um rio de cobre deságua
Sobre estas patas.
Uma mulher tem nas mãos
Uma bacia de águias

Buscando matar a sede
Daquele divino Nada.

O touro e a mulher sou eu.
Tu és, meu Deus,
A vida não desenhada
Da minha sede de céus.

XVI

Se eu já soubesse quem sou
Te saberia. Como não sei
Planto couves e cravos
e espero ver tua cara
Em tudo que semeei.
.................................

XVII (integral)

Penso que tu mesmo cresces
Quando te penso. e digo sem cerimônias
Que vives porque te penso.
Se acaso não te pensasse
Que fogo se avivaria não havendo lenha?
E se não houvesse boca
Por que o trigo cresceria?

Penso que o coração
Tem alimento na Ideia.
Teu alimento é uma serva
Que bem te serve á mão cheia.
Se tu dormes ela escreve
Acordes que te nomeiam.
Abre teus olhos, meu Deus.
Come de mim a tua fome.

Abre tua boca. E grita este nome meu.

XVIII

Se some, tem cuidado.
Se não some é fardo.
Cuida que ele não suma

Pois ficará mais pesado
Se sumir de tua alma.
................
Cuida que tal ideia
te tome. melhor um cheio de dentro
Que não conheces, um fartar-se
De um nada conhecimento

Do que um vazio de luto
Umas cascas sem os frutos
Pele sem corpo, ou ossos
Sem matérias que os sustente.
..............................

XIX

Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.
......................
Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

XX (integral)

Move-te. Desperta.
Há homens à tua procura.
Há uma mulher que sou eu.
A terra mora na Via-Láctea
Eu moro à beira de estradas
Não sou pequena nem alta.

Sou muito pálida
porque muito caminhei
Nas escurezas, no vício
De perseguir uns falares
Teus indícios.

Move-te. Tua aliança com os homens
Teu atar-se comigo
Tem muito de quebra e dessemelhança.
Muitos de nós agonizam.
A terra toda. Há de ser quase
brinquedo adivinhares
Onde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.
Eu tenho medo: Poeira.

Move-te se te queres vivo.


XXI (integral)

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia.
Outros hão ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez.

Não temas.
meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. pela poeira que fui
Serei e sou agora. pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos,
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amai sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.