sábado, 31 de março de 2012

Eugénio de Andrade, "Ensina-me ..."


Ensina-me, ensina-me como se faz
do barro essa canção,
essa luz que vi mudada em pedra
viva nos teus olhos.

Estou a falar de mim como se não fora
estrangeiro, o espinho
indolor da neve cravado na garganta.
Já não desço à pequena praça

onde cantam os anjos: o anel
caiu à água.
Aqui, dizem, morre-se melhor: o ar
é frio, o campo raso, roxo o orvalho.

É pouco o que desejo,
e desse pouco me despeço.

sexta-feira, 30 de março de 2012

quinta-feira, 29 de março de 2012

Judith Teixeira, "Podes ter os amores que quiseres"


Podes dizer que me não amas,
sim, podes dizê-lo,
e o mundo acreditar,

porque só eu saberei
que mentes!

Eu estou na tua alma
como a flama
que devora sob a cinza
as brasas dormentes...

Não creias no remorso
- o remorso não existe!

O que tu sentes
e o que em ti subsiste,
são o rubor da minha ternura
e a chama do meu amor
que em ti
nunca foram ausentes!...

Não julgues, não, que me esqueceste,
porque mentes a ti mesmo
se o disseres…
Podes ter os amores que quiseres,
que o teu amor por mim,
como uma dor latente e compungida

há-de acompanhar sempre
a tua e a minha vida!


quarta-feira, 28 de março de 2012

Carlos Drummond de Andrade, "Tarde de maio"


Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.

E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita sem máscaras?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.


terça-feira, 27 de março de 2012

segunda-feira, 26 de março de 2012

Augusto dos Anjos, "Vandalismo"


Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas* e longínquas datas,
Onde um nume* de amor, em serenatas,
canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida* e nas colunatas
Vertem lustrais* irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Com os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos ...

E erguendo os gládios e brandido as hastas*,
No desespero dos iconoclastas*
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos.


* Prisca - adj. Que pertence a tempos idos; antiga, velha.
* Nume - s.m. Divindade, poder celeste. Gênio, espírito sobrenatural.
* Fúlgido - adj. Brilhante, cintilante.
* Lustral - adj. Que purifica. Água sagrada; água do batismo.
* Hasta - s.f. Lanças, piques.
* Iconoclasta - adj. e s.m. e f .Membro de uma seita herética que no séc. VIII, proibia e destruía as imagens sagradas. Fam. Diz-se de pessoa que demonstra desrespeito pelas tradições.
Pessoa que ataca crenças firmemente enraizadas.

sábado, 24 de março de 2012

Orides Fontela













"Coruja"

Vôo onde ninguém mais - vivo em luz
                                                mínima
ouço o mínimo arfar - farejo o
                                         sangue


e capturo
a presa
em pleno escuro.


sexta-feira, 23 de março de 2012

Juan Ramón Jimenez, "Meia-estação interior"


A tarde do meu espírito,
de súbito, acendeu-se de escarlate.
Minhas ruínas deslumbraram-se ...

- Meu sentimento era
ausente do instante, e assustado
como um pequeno pássaro
que tremesse, a sonhar, nos hirtos ramos
da tarde gélida
(já vista ao longe a lua violeta),
por trás das escassas folhas, um momento
com sol de de ouro. -

... E no frio da alma, recolhida
na penugem suave e enfunada
do coração feito nostalgia,
um momento pulsou uma distante Primavera
de ventos claros e brilhantes nuvens,
sobre as árvores irreais - não secas -
nuas.

Tradução de José Bento

quinta-feira, 22 de março de 2012

Hilda Hilst














"Teu rosto ..."

Teu rosto de faz tarde
Sob a minha mão.
E envelheço terna
Dividida e austera
Um mergulho de luz
Metade treva.

Pinceis de fino pelo
Desenhando emoções.
Teu rosto se faz noite
Niquelado traço
Anil e ouro baço
Sob a minha mão.

E jardins de gelo
E muralhas-espelho
E papeis guardados
Castos de desejo.

Teu rosto
Uma tintura de fogo
Na planície dos dedos.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Alphonsus Guimaraens Filho, "Segundo soneto dos oitenta anos"


O eterno indagar: porque chegamos?
E na viagem que se segue inquieta
e trepidante, quem em nós secreta
pungir ou alegria indecifrados,

que se fundem, que se esvaem, quando vamos ?
Cada década se esfaz e como pesa,
depois, sentir o ido! O que preza
é algo que veio num rolar de dados.

Mas eis-me aqui, jungido a esse momento
em que tudo é um volver para o já sido
que eu busco em vão nos meus desvãos reter,

vendo que a sombra de um veleiro lento
é tudo o que restou de um cais partido
onde espantoso mar devora o ser.

terça-feira, 20 de março de 2012

segunda-feira, 19 de março de 2012

Mario Quintana, "Virá bater à nossa porta ?"

Esse tropel de cascos na noite profunda
Me enche de espanto, amigo...
Pois agora não existem mais carros de tração animal.
É com certeza a morte no seu carro fantasma
Que anda a visitar seus doentes pela cidade ...
Será ela? Virá acaso bater à nossa porta?
Mas os fantasmas não batem; eles atravessam tudo silenciosamente,
Como atravessam nossas vidas ...
A morte é a coisa mais antiga do mundo
E sempre chega pontualmente na hora incerta ...
Que importa, afinal?
É agora a única surpresa que nos resta!

domingo, 18 de março de 2012

Graciliano Ramos



















"Sobre o ato de escrever"

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal para secar.
Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa.
A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso;
a palavra foi feita para dizer.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Ensemble Matheus, "Il Gardellino, de Vivaldi"

António Botto, "Ouve, meu anjo"


Ouve, meu anjo:
Se eu beijasse a tua pele?
Se eu beijasse a tua boca
Onde a saliva é mel?

Tentou, severo, afastar-se
Num sorriso desdenhoso;
Mas aí!,
A carne do assasssino
É como a do virtuoso.

Numa atitude elegante,
Misterioso, gentil,
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febril.

Na vidraça da janela,
A chuva, leve, tinia...

Ele apertou-me cerrando
Os olhos para sonhar -
E eu lentamente morria
Como um perfume no ar!


quinta-feira, 15 de março de 2012

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Nó"


Por que fizeste de mim um nó?
Por que ao só
adivinhá-lo, sem desfazê-lo,
todo estremeço?

Por que turvei-me
escureci-me
ao iracundo
ruir de muros de um passado
nunca existido?

Dize se estou!
Dize se tudo
não é só
este crespo, irritante nó
em que me torço, em que retorço
a sombra do que fui, buscando
o que era agora e já foi quando,
o que, se salva, nos aniquila,
luz que mais punge quando tranquila,
sol de perdido céu nunca visto,
dor de querer ver além disto,
multicegado?

terça-feira, 13 de março de 2012

Diogo Bernardes, "Soneto"


Se com rigor, senhora, vos parece
Que podeis desviar do seu cuidado
Um firme coração, que s'oferece
A ser inda de vós pior tratado;

Além de ser engano, se conhece
Que mal sabeis d'amor desenganado,
Qu'o verdadeiro amor muito mais cresce
Ali, onde se vê mais desamado.

Por isso o desamor, que me mostrais,
Mudai em amor já, se não quereis
Que com desgosto vosso mais vos ame;

Vencer-me com desprezos não cuideis;
Bem me podeis matar, bem me matais;
Mas não posso fazer que vos desame.


Diogo Bernardes - 1532 - 1605.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Jorge Luis Borges, "Em memória de Angélica".


Quantas possíveis vidas terão ido
Com esta pobre e diminuta morte,
Quantas possíveis vidas que a sorte
Daria à memória ou ao olvido !
Quando eu morrer morrerá um passado;
Com esta flor um futuro está morto
Nas águas que ignoram, um aberto
Futuro pelos astros arrasado.
Eu, como ela, morro de infinitos
Destinos que o acaso não me depara;
Busca minha sombra os desgastados mitos
De uma pátria que sempre mostrou a cara.
Um breve mármore vela sua memória;
Sobre nós, vai crescendo, atroz, a história.

domingo, 11 de março de 2012

sábado, 10 de março de 2012

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Passagem"


Quantos olhos agora
(e no entanto cegos)
me espiam.

Quantas bocas ainda
(e no entanto mortas)
me falam.

Quantas mãos amigas
(no entanto paradas)
me afagam.

Quantos braços, quantos
(já no entanto ausentes)
me abraçam.

Vou por uma rua
que sequer existe
e acolhe

meus passos na cidade
que já é tão outra
num mundo

que já é tão outro
e meu coração oscila
e meu coração

se aflige e há uns cantos
e há vozes e choros
tão outros.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Drummond, "No pequeno museu sentimental"

No pequeno museu sentimental
os fios de cabelo religados
por laços mínimos de fita
são tudo que dos montes hoje resta,
visitados por mim, montes de Vênus.

Apalpo, acaricio a flora negra,
a negra continua, nesse branco
total do tempo extinto
em que eu, pastor felante, apascentava
caracóis perfumados, anéis negros,
cobrinhas passionais, junto do espelho
que com elas rimava, num clarão.

Os movimentos vivos no pretérito
enroscam-se nos fios que me falam
de perdidos arquejos renascentes
em beijos que da boca deslizavam
para o abismo de flores e resinas.

Vou beijando a memória desses beijos.

quinta-feira, 8 de março de 2012

domingo, 4 de março de 2012

João Cabral de Melo Neto, "De uma praia do atlântico"


Se o olhar visse curvo,
como se diz que é o espaço,
olhando a sudoeste
de meu atual terraço,

podia ver além
do zinco ondulado (a água)
tuas praias  de coqueiros
pubescentes, não glabras.

Mas há um outro ver
além do primário (o olho),
porque daqui te vejo
com o ver do corpo todo,

sob a táctil  luz morna,
com espessura de sucos,
de um sol onde se está
como dentro de um fruto.



sábado, 3 de março de 2012

Carlos Drummond de Andrade













"A mesa"
E não gostavas de festa. . .
Ó velho, que festa grande
hoje te faria a gente.
E teus filhos que não bebem
e o que gosta de beber,
em torno da mesa larga,
largavam as tristes dietas,
esqueciam seus fricotes,
e tudo era farra honesta
acabando em confidência.
Ai, velho, ouvirias coisas
de arrepiar teus noventa.
E daí, não te assustávamos,
porque, com riso na boca,
e a nédia galinha, o vinho
português de boa pinta,
e mais o que alguém faria
de mil coisas naturais
e fartamente poria
em mil terrinas da China,
já logo te insinuávamos
que era tudo brincadeira.
Pois sim. Teu olho cansado,
mas afeito a ler no campo
uma lonjura de léguas,
e na lonjura uma rês
perdida no azul azul,
entrava-nos alma adentro
e via essa lama podre
e com pesar nos fitava
e com ira amaldiçoava
e com doçura perdoava
(perdoar é rito de pais,
quando não seja de amantes).
E, pois, tudo nos perdoando,
por dentro te regalavas
de ter filhos assim. . . Puxa,
grandessíssimos safados,
me saíram bem melhor
que as encomendas. De resto,
filho de peixe. . . Calavas,
com agudo sobrecenho
interrogavas em ti
uma lembrança saudosa
e não de todo remota
e rindo por dentro e vendo
que lançaras uma ponte
dos passos loucos do avô
à incontinência dos netos,
sabendo que toda carne
aspira à degradação,
mas numa via de fogo
e sob um arco sexual,
tossias. Hem, hem, meninos,
não sejam bobos. Meninos?
Uns marmanjos cinqüentões,
calvos, vividos, usados,
mas resguardando no peito
essa alvura de garoto,
essa fuga para o mato,
essa gula defendida
e o desejo muito simples
de pedir à mãe que cosa,
mais do que nossa camisa,
nossa alma frouxa, rasgada. . .
Ai, grande jantar mineiro
que seria esse. . . Comíamos,
e comer abria fome,
e comida era pretexto.
E nem mesmo precisávamos
ter apetite, que as coisas
deixavam-se espostejar,
e amanhã é que eram elas.
Nunca desdenhe o tutu.
Vá lá mais um torresminho.
E quanto ao peru? Farofa
há de ser acompanhada
de uma boa cachacinha,
não desfazendo em cerveja,
essa grande camarada.
Ind'outro dia. . . Comer
guarda tamanha importância
que só o prato revele
o melhor, o mais humano
dos seres em sua treva?
Beber é pois tão sagrado
que só bebido meu mano
me desata seu queixume,
abrindo-me sua palma?
Sorver, papar: que comida
mais cheirosa, mais profunda
no seu tronco luso-árabe,
que a todos nos une em um
tal centímano glutão,
parlapatão e bonzão!
E nem falta a irmã que foi
mais cedo que os outros e era
rosa de nome e nascera
em dia tal como o de hoje
para enfeitar tua data.
Seu nome sabe a camélia,
e sendo uma rosa-amélia,
flor muito mais delicada
que qualquer das rosas-rosa,
viveu bem mais do que o nome,
porém no íntimo claustrava
a rosa esparsa. A teu lado,
vê: recobrou-se-lhe o viço.
Aqui sentou-se o mais velho.
Tipo do manso, do sonso,
não servia para padre,
amava casos bandalhos;
depois o tempo fez dele
o que faz de qualquer um;
e à medida que envelhece,
vai estranhamente sendo
retrato teu sem ser tu,
de sorte que se o diviso
de repente, sem anúncio,
és tu que me reapareces
noutro velho de sessenta.
Este outro aqui é doutor,
o bacharel da família,
mas suas letras mais doutas
são as escritas no sangue,
ou sobre a casca das árvores.
Sabe o nome da florzinha
e não esquece o da fruta
mais rara que se prepara
num casamento genético,
Mora nele a nostalgia,
citadino, do ar agreste,
e, camponês, do letrado.
Então vira patriarca.
Mais adiante vês aquele
que de ti herdou a dura
vontade, o duro estoicismo.
Mas, não quis te repetir.
Achou não valer a pena
reproduzir sobre a terra
o que a terra engolirá.
Amou. E ama. E amará.
Só não quer que seu amor
seja uma prisão de dois,
um contrato, entre bocejos
e quatro pés de chinelo.
Feroz a um breve contato,
à segunda vista, seco,
à terceira vista, lhano,
dir-se-ia que ele tem medo
de ser, fatalmente, humano.
Dir-se-ia que ele tem raiva,
mas que mel transcende a raiva,
e que sábios, ardilosos
recursos de se enganar
quanto a si mesmo: exercita
uma força que não sabe
chamar-se, apenas, bondade.
Esta calou-se. Não quis
manter com palavras novas
o colóquio subterrâneo
que num sussurro percorre
a gente mais desatada.
Calou-se, não te aborreças,
Se tanto assim a querias,
algo nela ainda te quer,
à maneira atravessada
que é própria de nosso jeito.
(Não ser feliz tudo explica.)
Bem sei como são penosos
esses lances de família,
e discutir neste instante
seria matar a festa,
matando-te — não se morreu
ma só vez, nem de vez.
Restam sempre muitas vidas
para serem consumidas
na razão dos desencontros
de nosso sangue nos corpos
por onde vai dividido.
Ficam sempre muitas mortes
para serem longamente
reencarnadas noutro morto.
Mas estamos todos vivos.
E mais que vivos, alegres.
Estamos todos como éramos
antes de ser, e ninguém
dirá que ficou faltando
algum dos teus. Por exemplo:
ali ao canto da mesa,
não por humilde,
talvezpor ser o rei dos vaidosos
e se pelar por incômodas
posições de tipo gauche,
ali me vês tu. Que tal?
Fica tranqüilo: trabalho.
Afinal, a boa vida
ficou apenas: a vida
(e nem era assim tão boa
e nem se fez muito má).
Pois ele sou eu. Repara:
tenho todos os defeitos
que não farejei em ti
e nem os tenho que tinhas,
quanto mais as qualidades.
Não importa: sou teu filho
com ser uma negativa
maneira de te afirmar.
Lá que brigamos, brigamos,
opa! que não foi brinquedo,
mas os caminhos do amor,
só amor sabe trilhá-los.
Tão ralo prazer te dei,
nenhum, talvez... ou senão,
esperança de prazer,
é, pode ser que te desse
a neutra satisfação
de alguém sentir que seu filho,
de tão inútil, seria
sequer um sujeito ruim.
Não sou um sujeito ruim.
Descansa, se o suspeitavas,
mas não sou lá essas coisas.
Alguns afetos recortam
o meu coração chateado.
Se me chateio? demais.
Esse é meu mal. Não herdei
de ti essa balda. Bem,
não me olhes tão longo tempo,
que há muitos a ver ainda.
Há oito. E todos minúsculos,
todos frustrados. Que flora
mais triste fomos achar
para ornamento de mesa!
Qual nada. De tão remotos,
de tão puros e esquecidos
no chão que suga e transforma,
são anjos. Que luminosos!
que raios de amor radiam,
e em meio a vagos cristais,
o cristal deles retine,
reverbera a própria sombra.
São anjos que se dignaram
participar do banquete,
alisar o tamborete,
viver vida de menino.
São anjos. E mal sabias
que um mortal devolve a Deus
algo de sua divina
substância aérea e sensível,
se tem um filho e se o perde.
Conta: quatorze na mesa.
Ou trinta? serão cinqüenta,
que sei? se chegam mais outros,
uma carne cada dia
multiplicada, cruzada
a outras carnes de amor.
São cinqüenta pecadores,
se pecado é ter nascido
e provar, entre pecados,
os que nos foram legados.
A procissão de teus netos,
alongando-se em bisnetos,
veio pedir tua bênção
e comer de teu jantar.
Repara um pouquinho nesta,
no queixo, no olhar, no gesto,
e na consciência profunda
e na graça menineira,
e dize, depois de tudo,
se não é, entre meus erros,
uma imprevista verdade.
Esta é minha explicação,
meu verso melhor ou único,
meu tudo enchendo meu nada.
Agora a mesa repleta
está maior do que a casa.
Falamos de boca cheia,
xingamo-nos mutuamente,
rimos, ai, de arrebentar,
esquecemos o respeito
terrível, inibidor,
e toda a alegria nossa,
ressecada em tantos negros
bródios comemorativos
(não convém lembrar agora),
os gestos acumulados
de efusão fraterna,
atados(não convém lembrar agora),
as fína-e-meigas palavras
que ditas naquele tempo,
teriam mudado a vida
(não convém mudar agora),
vem tudo à mesa e se espalha
qual inédita vitualha.
Oh que ceia mais celeste
e que gozo mais do chão!
Quem preparou? que inconteste
vocação de sacrifício
pôs a mesa, teve os filhos?
quem se apagou? quem pagou
a pena deste trabalho?
Quem foi a mão invisível
que traçou este arabesco
de flor em torno ao pudim,
como se traça uma auréola?
quem tem auréola? quem não
a tem, pois que, sendo de ouro,
cuida logo em reparti-la,
e se pensa melhor faz?
quem senta do lado esquerdo,
assim curvada? que branca,
mas que branca mais que branca
tarja de cabelos brancos
retira a cor das laranjas,
anula o pó do café,
cassa o brilho aos serafins?
quem é toda luz e é branca?
Decerto não pressentias
como o branco pode ser
uma tinta mais diversa
da mesma brancura. . . Alvura
elaborada na ausênciade ti,
mas ficou perfeita,
concreta, fria, lunar.
Como pode nossa festa
ser de um só que não de dois?
Os dois ora estais reunidos
numa aliança bem maior
que o simples elo da terra.
Estais juntos nesta mesa
de madeira mais de lei
que qualquer lei da república.
Estais acima de nós,
acima deste jantar
para o qual vos convocamos
por muito — enfim — vos querermos
e, amando, nos iludirmos
junto da mesa
vazia.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Alphonsus de Guimaraens Filho, "A todos os poetas"

A todos vós que um dia pressentistes
os passos alumbrados da poesia
na vossa alma soar — saudoso dia
que mais humanos, graves, e mais tristes

para sempre vos fez... A todos vós
que, amando, o amor sentistes impossível,
que, vendo o mundo, amastes o invisível,
e, ouvindo o canto, ouvistes nele a voz

de um reino imerso em névoa como clara
ilha na solidão... E deslumbrados
as palavras no vácuo erguestes para

reanimá-las e reacendê-las,
a todos vós o céu acolhe, consolados
pela luz da mais casta entre as estrelas.