quarta-feira, 30 de março de 2011

Jorge de Lima













"Introdução ao Canto Primeiro - Fundação da Ilha, da Invenção de Orfeu"

                        I

Um barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.

Nobre apenas de memórias,
vai lembrando de seus dias,
dias que são as histórias,
histórias que são porfias
de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.

Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vária mastreação,
mastros que apóiam caminhos
a países de outros vinhos.
Está é a ébria embarcação.

Barão ébrio, mas barão,
de manchas condecorado;
entre o mar, o céu e o chão
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mão.

Raramente comento o que posto aqui, pois não tenho conhecimento profundo e sistematizado de literatura ou arte plástica. Só o faço quando acho que posso acrescentar algo de novo ou importante sobre os poemas e imagens.
Se estão aqui é porque eu gosto, porque eu admiro. E só.
Mas, não posso deixar de acrescentar a imensa impressão que está me causando a descoberta de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima.

terça-feira, 29 de março de 2011

João Cabral de Melo Neto













"Não há guarda-chuva ..."

Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.
Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.
Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.
Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.
Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

domingo, 27 de março de 2011

Rainer Maria Rilke, "São Sebastião"

Como alguém que jazesse, está de pé,
sustentado por sua grande fé.
Como mãe que amamenta, a tudo alheia,
grinalda que a si mesma se cerceia.

E as setas chegam: de espaço em espaço,
como se de seu corpo desferidas,
tremendo em suas pontas soltas de aço.
Mas ele ri, incólume, às feridas.

Num só passo a tristeza sobrevém
e em seus olhos desnudos se detém,
até que a neguem, como bagatela,
e como se poupassem com desdém
os destrutores de uma coisa bela.

Tradução de Augusto de Campos

sábado, 26 de março de 2011

Cecilia Meireles, "Timidez"

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve…

- mas só esse eu não farei.
Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares

e une as terras mais distantes…
- palavra que não direi.
Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,

apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,
- que amargamente inventei.
E, enquanto não me descobres,

os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando…
e um dia me acabarei.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Tomás Antônio Gonzaga, "Lira XII"

Minha bela Marília, tudo passa;
a sorte deste mundo é mal segura;
se vem depois dos males a ventura,
vem depois dos prazeres a desgraça.
          Estão os mesmos Deuses
sujeitos ao poder do ímpio Fado:
Apolo já fugiu do Céu brilhante,
          já foi Pastor de gado.

A devorante mão da negra Morte
acaba de roubar o bem, que temos;
até na triste campa não podemos
zombar do braço da inconstante sorte.
          Qual fica no sepulcro,
que seus avós ergueram, descansado;
qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos
          ferro do torto arado.

Ah! enquanto os Destinos impiedosos
não voltam contra nós a face irada,
façamos, sim façamos, doce amada,
os nossos breves dias mais ditosos.
          Um coração, que frouxo
a grata posse de seu bem difere,
a si, Marília, a si próprio rouba,
          e a si próprio fere.

Ornemos nossas testas com as flores.
e façamos de feno um brando leito,
prendamo-nos, Marília, em laço estreito,
gozemos do prazer de sãos Amores.
          Sobre as nossas cabeças,
sem que o possam deter, o tempo corre;
e para nós o tempo, que se passa,
          também, Marília, morre.

Com os anos, Marília, o gosto falta,
e se entorpece o corpo já cansado;
triste o velho cordeiro está deitado,
e o leve filho sempre alegre salta.
          A mesma formosura
é dote, que só goza a mocidade:
rugam-se as faces, o cabelo alveja,
          mal chega a longa idade.

Que havemos de esperar, Marília bela?
Que vão passando os florescentes dias?
As glórias, que vêm tarde, já vêm frias;
e pode enfim mudar-se a nossa estrela.
          Ah! Não, minha Marília,
aproveite-se o tempo, antes que faça
o estrago de roubar ao corpo as forças
          e ao semblante a graça.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Cassiano Ricardo, "O banquete"

  
      Em meu quarto, o silêncio,
e a lâmpada que me divide em dois.
O meu quarto é mais pobre que o de Jó;
duas vezes eu e uma lâmpada só.

     No salão do vizinho,
que não me convidou, a mesa alva;
e os convivas bebendo um vinho triste.
Será Sangue de Orfeu? lacrima-cristi?

     Porém, se o vinho é triste,
há estrelas líquidas em copos altos,
que cintilam, qual geométricos lírios,
erguidos no ar à hora dos delírios.

     Sinto-me bem, assim,
não convidado, pois não bebo estrela
nem sangue; sou enteado da alegria.
A tristeza é o meu pão de cada dia.

     Seria eu, na festa,
um insulto aos demais, algo de cômico.
Uma pedra aos que têm, no ombro, uma asa.
Um carvão, quando tudo, ali, é brasa.

     Sinto-me bem, porque
sou um cacto com folhas de silêncio.
Não troco por nenhum gole de vinho
este meu ser noturno e submarinho.

     Que só me cheguem, pois,
o terrincar das taças, o confuso
gorjeio das bacantes. Só me agrada
beber - rosa num copo - a madrugada.

     Ah, se soubessem,todos,
o bem que me fizeram, excluindo-me
do banquete - o mais lógico dos olvidos -
ergueriam um brinde aos excluídos.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Murilo Mendes, "O homem, a luta e a eternidade"

Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!

Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.

domingo, 20 de março de 2011

Roberto Piva













"A Piedade"

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar
e da luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentosos adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Olavo Bilac, "Dualismo" e Augusto dos Anjos, "Vítima do Dualismo".

Publico hoje dois sonetos muito bons e com o mesmo tema, mas de autores que podem ser considerados opostos em tudo:

OLAVO BILAC




Ele foi um grande parnasiano brasileiro, que devido a sua qualidade e enorme sucesso foi o alvo preferido de muitos modernistas, que precisavam destruir as formas poéticas que lhes antecediam.

Ainda hoje, quem se interesse por literatura brasileira a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, após ler os ataques tão fortes e ferinos que o poeta e o seu estilo receberam, corre o risco do preconceito contra o autor e o parnasianismo.

Porém, a poesia de Olavo Bilac sobreviveu a maior parte da dos seus críticos.


AUGUSTO DOS ANJOS



Augusto dos Anjos foi um autor cuja poesia impar parece estranha no primeiro momento. Sua obra tem uma grande unidade devido a sua visão singular da vida e a sua "linguagem poética própria".

Seu único livro publicado - "Eu" - é de 1912. Não fez sucesso de crítica. Muitos consideraram seus versos "de mau gosto", e os modernistas (embasbacados com os boulevards de Paris) não conseguiram enxergar a novidade que aquele paraibano trazia à poesia brasileira.

Ferreira Gullar, no estudo crítico que antecede a uma edição da obra completa de Augusto, assim escreve:

"Não conheço nenhum outro poeta brasileiro, anterior a Augusto dos Anjos, que, a fim de exprimir a experiência concreta da vida, tenha de tal modo, abandonando os recursos literários usuais, dado as costas aos canais prontos da metáfora prestigiosa. Essa necessidade de não se desprender do vivido, de não traí-lo, de não disfarçá-lo com delicadezas, de erguê-lo de sua vulgaridade à condição de poesia por força da palavra é que determina a originalidade desse poeta e o salto que sua obra significa naquele momento da nossa poesia”.

Atualmente, parte da crítica já tira Augusto da vala dos poetas "bizarros" e o coloca como um pré-modernista.


Dualismo, de Olavo Bilac

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se, a arder, no coração tivesses
tumulto e o clamor de um largo oceano.

Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vértice vesano*,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.

Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes;

E no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.

* Vesano - insensato, delirante.

***********************************

Vítima do Dualismo, de Augusto dos Anjos

Ser miserável dentre os miseráveis
- Carrego em minhas células sombrias
Antagonismos irreconciliáveis
E as mais opostas idiosincrasias!

Muito mais cedo do que o imagináveis
Eis-vos, minha alma, enfim, dada às bravias
Cóleras dos dualismos implacáveis
E à gula negra das antinomias!

Psiquê biforme, O Céu e o Inferno absorvo...
Criação a um tempo escura e cor-de-rosa,
Feita dos mais variáveis elementos,

Ceva-se em minha carne, como um corvo,
A simultaneidade ultramonstruosa
De todos os contrastes famulentos*!

* famulentos - esfomeados, famintos.


Acrescentaria também que, se a poesia de Olavo Bilac é o equilíbrio do Vaso Grego a exprimir toda beleza etérea e contida do classicismo, a de Augusto dos Anjos tem a objetividade do Vaso de Barro, com a beleza do musgo reles e a força da realidade da vida.

Seus bigodes também eram opostos:

quinta-feira, 17 de março de 2011

Jorge Luis Borges, "On his blindness"

Com o passar dos anos me rodeia
uma constante névoa refulgente
que aos poucos reduz todo o existente
a algo informe e sem cor. Quase a uma idéia.
A vasta noite elementar e o dia
cheio de gente são essa neblina
de luz incerta e fiel que não declina
e que espreita na aurora. Gostaria
de ver um rosto algum dia. Ignoro
a inexplorada enciclopédia, o prazer
de livros que minha mão sabe ler,
as altas aves e as luas de ouro.
Aos outros todos resta o universo;
à minha penumbra, o hábito do verso.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Orides Fontela









"Poema"

Saber de cor o silêncio
diamante e/ou espelho
o silêncio além
do branco.

Saber seu peso
seu signo
– habitar sua estrela
    impiedosa.

Saber seu centro: vazio
esplendor além
da vida
e vida além
da memória.

Saber de cor o silêncio

– e profaná-lo, dissolvê-lo
                              em palavras.

terça-feira, 15 de março de 2011

Quintana e o pai (Um Outro lado).

Transcrevo abaixo o artigo de Jayme Copstein, publicado no site sobre a genealogia da família gaúcha Assis Brasil (http://assisbrasil.org/), onde consta, na página do descendente João de Souza Brasil, um link (http://assisbrasil.org/joao/quintana.htm) com muitas referências ao poeta Mario Quintana e a outros conterrâneos seus de Alegrete.

Publico este artigo por ser a única referência que conheço sobre as relações do poeta com sua família, um assunto raramente abordado por ele nos poemas e nunca nas entrevistas.























QUINTANA E O PAI

Jayme Copstein
(Jornalista gaúcho, com atividade em jornal e rádio desde 1943. Atualmente, é comentarista de opinião da Rádio Gaúcha).

30-05-2006.

Quando fui para o Correio do Povo, em abril de 1968, coube-me a mesa confronte à de Mario Quintana. A coincidência marcou o início de longos papos descompromissados, logo transformados em amizade. Muito anos depois, quando ele fez o testamento em favor da sobrinha Helena, Antônio Carlos Ribeiro e eu fomos as testemunhas. Mario desejava manter a privacidade da decisão e nos escolheu como amigos de confiança.

As confidências trocadas naquela redação, onde muitas vezes, em domingos e feriados, éramos os dois únicos habitantes do planeta, foram muitas, inclusive sobre o período em que teve problemas de alcoolismo. Contava que na Clínica Pinel lhe haviam detectado pequena deficiência de condução elétrica no cérebro, cujos sintomas a embriaguez aliviava. Substituída a bebida por um medicamento adequado, nunca mais pôs álcool na boca.

Aí paravam as confidências sobre o alcoolismo. Havia algo, entretanto, de que ele não falava. Segundo depoimento de outras pessoas, seu comportamento, quando embriagado, era nitidamente autopunitivo. Abordava os freqüentadores dos bares com grosserias, para lhes esgotar a paciência e ser por eles agredido.

Mais lacônicas, ainda, eram suas referências ao pai que, alarmado com as “poetices” dele quisera fazer “um homem”, mandando-o estudar no Colégio Militar. A caserna haveria de ensiná-lo.

Em vão. Eliminado do curso pelas sucessivas reprovações em matemática, Mario empregou-se na Livraria do Globo para estar perto dos livros e dos escritores. O pai o tirou de lá porque não queria filho vagabundo, zé-ninguém. A relação entre os dois tornou-se crítica.

Mario tentou sepultar conflito no silêncio que reina sobre a figura paterna em sua poesia desta fase, se é que se pode chamar assim a que vai até o tratamento e a cura do alcoolismo. Mas há evidente sentimento de culpa nas grosserias, quando embriagado, em busca de punição.

O conflito começou a ser resolvido com o apoio psicológico recebido na Pinel. Logo em seguida, o início da reconciliação com a figura paterna aparece no poema “O Velho no Espelho”:

"(...) Nosso olhar – duro – interroga:
O que fizeste de mim
Eu, Pai,
Tu é que me invadiste.
Lentamente, ruga a ruga. Que importa
Eu sou ainda
aquele mesmo menino teimoso de sempre
e os teus planos enfim lá se foram por terra
mas sei que vi, um dia - a longa, a inútil guerra!- vi sorrir nesses cansados olhos
um orgulho triste."

A reconciliação torna-se definitiva, depois, em outro poema, “As mãos de meu pai”:

"As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor da terra
- como são belas as tuas mãos
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram da nobre cólera dos justos
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai, essa beleza que se chama simplesmente vida."

Mas então, Mario Quintana já libertara em si a figura doce, cuja lembrança é a que todos guardamos dele.


domingo, 13 de março de 2011

Luis Miguel Queirós, "Alarmes"

não desenroles tanto a noite
em tua pele. não equipares ao corpo
o tropel das palavras
na toalha. não encalhes em mim
tanta beleza. aperta
a blusa. recolhe do meu rosto
os teus olhares, alguma lágrima
brilhando sobre a mesa.

sossega. é cedo ainda
para o deserto trepidante
do desejo. não julgues saber já
que desenlaces
o meu corpo procura
sobre o teu. nem eu te ofereço
o armadilhado morango
do amor. apenas peço
que adormeças,
que dês lugar na cama
ao meu fantasma.

coloca o coração
numa órbita prudente. talvez não tarde
o tempo,
o lugar onde eu te diga
as palavras que desligam
os alarmes que instalei
em toda a alma.

sábado, 12 de março de 2011

Alberto da Cunha Melo




















"Relógio de ponto"

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim os jogos,
a poesia, todos os pássaros,
mais do que tudo: todo o amor.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e atravessaremos os córregos
cheios de areia, após as chuvas.

Se alguma súbita alegria
retardar o nosso regresso,
um inesperado companheiro
marcará o nosso cartão.

Tudo que levamos a sério
torna-se amargo. Assim as faixas
da vitória, a própria vitória,
mais do que tudo: o próprio Céu.

De quando em quando faltaremos
a algum compromisso na Terra,
e lavaremos as pupilas
cegas com o verniz das estrelas.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Eucanaã Ferraz, "Carícia"

Demore-se no carinho,
de modo que no rosto do outro
vá a mão como se não fora
voltar. Repita,

demorando-se mais,
de modo que a mão descanse
naquele rosto, como se,
e se esqueça de que.

Repita, demore-se no carinho
como se a mão desse adeus,
agarrada ao rosto que se vai.
Outra vez: repita,

demorando-se mais
e mais, como se a mão bebesse
daquele rosto para, saciada, dormir
ali mesmo, ao pé da fonte.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Charles Baudelaire





















"O Albatroz"

Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
O navio a singrar por glaucos patamares.

Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
As asas em que fulge um branco imaculado.

Antes tão belo, como é feio na desgraça
Esse viajante agora flácido e acanhado!
Um, com o cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

O Poeta se compara ao príncipe da altura
Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
Exilado no chão, em meio à turba obscura,
As asas de gigante impedem-no de andar.

Tradução de Ivan Junqueira

terça-feira, 8 de março de 2011

segunda-feira, 7 de março de 2011

Geir Campos, "A árvore"

Ó árvore, quantos séculos levaste
a aprender a lição que hoje me dizes:
o equilíbrio, das flores às raízes,
sugerindo harmonia onde há contraste?

Como consegues evitar que uma haste
e outra se batam, pondo cicatrizes
inúteis sobre os membros infelizes?
Quando as folhas e os frutos comungaste?

Quantos séculos, árvore, de estudos
e experiências – que o vigor consomem
entre vigílias e cismares mudos –

demoraste aprendendo o teu exemplo,
no sossego da selva armada em templo?
E dize-me: há esperança para o Homem?

domingo, 6 de março de 2011

Mário Faustino, "Ego de Mona Kateudo" * e Safo de Lesbos.

Dor, dor de minha alma, é madrugada
E aportam-me lembranças de quem amo.
E dobram sonhos na mal-estrelada
Memória arfante donde alguém que chamo
Para outros braços cardiais me nega
Restos de rosa entre lençóis de olvido.
Ao longe ladra um coração na cega
Noite ambulante. E escuto-te o mugido,
Oh vento que meu cérebro aleitaste,
Tempo que meu destino ruminaste.
Amor, amor, enquanto luzes, puro,
Dormido e claro, eu velo em vasto escuro,
Ouvindo as asas roucas de outro dia
Cantar sem despertar minha alegria.

* O nome do poema - "Ego de Mona Kateudo" - vem do grego antigo.
Significa "E eu deitada estou, sozinha”, e é o último verso de um fragmento de Safo.

"A lua já caiu,
as Plêiades também.
É meia-noite.
A hora passa;
e eu deitada estou, sozinha".

sexta-feira, 4 de março de 2011

Eucanaã Ferraz, "Por vezes, não raro ..."

Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Rainer Maria Rilke, "Torso arcaico de Apolo"

Não sabemos como era a cabeça, que falta,
de pupilas amadurecidas. Porém
o torso arde ainda como um candelabro e tem,
só que meio apagada, a luz do olhar, que salta

e brilha. Se não fosse assim, a curva rara
do peito não deslumbraria, nem achar
caminho poderia um sorriso e baixar
da anca suave ao centro onde o sexo se alteara.

Não fosse assim, seria essa estátua uma mera
pedra, um desfigurado mármore, e nem já
resplandecera mais como pele de fera.

Seus limites não transporia desmedida
como uma estrela; pois ali ponto não há
que não te mire. Força é mudares de vida.

Tradução de Manuel Bandeira

terça-feira, 1 de março de 2011

Ildásio Tavares, "O barco bêbado"

Mostrou o poema a seu amigo,
com a certeza adolescente
de que ninguém, na França,
poderia estar fazendo igual.

(E, provavelmente, estava certo)

Depois, mudou as armas; mudou
de ramo. Arranjou uma mulher.
E se acabou,
como a esfuziante flor do hibiscus
que dura um dia, murcha e cai no chão.

(Há coisas grandes demais para os dezoito anos).