quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Durval Pereira, "Paisagem de Minas Gerais"

Miguel Torga, "Identidade"

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Eugénio de Andrade, "Durou muitos anos ..."

Durou muitos anos, aquele verão.
Crescíamos sem pressa com o trigo
e as abelhas. Com o sol
corríamos para a àgua, à noite
num verso de Shakespeare ou
na nossa boca uma estrela dançava.
Aprendíamos a amar, aprendíamos
a morrer. A todos os sentidos
pedíamos para escutar o rumor,
não do mundo, que ninguém abarca,
apenas da brancura de uma folha
e outra folha ainda de papel.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Takaoka, "Ouro Preto"

Carlos Drummond de Andrade

"Indicações"

Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais cedo para casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio.
Indecisão: Irei ao cinema ?
Dos três empregos de tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar, mais sério, não ardente,
que posas nas coisas, e elas compreendem.

Ou pelo menos supões que sim. São fiéis as coisas
de teu escritório. A caneta velha. Recusas-te a troca-la
pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó trouxeram consigo.
Bem a conheces, tua mesa. Cartas, artigos, poemas
saíram dela, de ti. Da dura substância,
do calmo da floresta partida elas vieram,
as palavras que achaste e juntaste, distribuindo-as.

A mão passa
na aspereza. O verniz que se foi. Não a árvore
que regressa. a estrada voltando. Minas que espreita,
e espera, longamente espera a tua volta sem som.
A mesa se torna leve, e nela viajas
em ares de paciência, acordo, resignação.
Olhai a mesa que foge, não a toqueis. É a mesa volante,
de suas gavetas saltam papeias escuros, enfim os libertados
                                                                                        [segredos
sobre a terra metálica se espalham, se amortalham e calam-se.

De novo aqui, miúdo território
civil, sem sonhos. Como pressentindo
que um dia se esvaziam os quartos, se limpam as paredes,
e pára um caminhão e descem carregadores,
e no livro municipal se cancela um registro,
olhas fundamente o risco de cada
coisa, a cor,
de cada face dos objetos familiares.
A família é pois uma arrumação de móveis, soma
de linhas, volumes, superfícies. E são portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira
que de longe em longe se remove ... e insiste.

Certamente faltam muitas explicações, seria difícil
compreender, mesmo ao cabo de longo tempo, porque um gesto
se abriu, outro se frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao jantar, na pausa da noite,
um ano, depois outro, e outros e outros,
todas as vozes ouvidas na casa durante quinze anos.
Entretanto, devem estar em alguma parte: acumularam-se,
embeberam degraus, invadiram canos,
enformaram velhos papéis,perderam a força,o calor,
existem hoje em subterrâneos, umas na memória, outras na argila
                                                                                        [do sono.

Como saber ? A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
por tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem,
e o chão está liso, é liso.
Pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado; e tudo imóvel.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Sou Eu"

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que
                                                                          [se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Xilogravura de Toraji Ishikawa, "Mulher no Banho".


Felisberto Ranzini, "Paquetá"

Manuel Bandeira, "Plenitude"

Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.
O ar é como de forja. A força nova e pura
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.

A energia vital que no ventre profundo
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
Sobe no caule, faz todo galho fecundo
E estala na amplidão das ramadas felizes,

Entra-me como um vinho acre pelas narinas...
Arde-me na garganta... E nas artérias sinto
O bálsamo aromado e quente das resinas
Que vem na exalação de cada terebinto.

O furor de criação dionisíaco estua
No fundo das rechãs, no flanco das montanhas,
E eu observo-o nos sons, na glória da luz crua
E ouço-o ardente bater dentro de minhas entranhas.

Tenho êxtase de santo... Ânsias para a virtude...
Canta em minh'alma absorta um mundo de harmonias.
Vêm-me audácias de herói... Sonho o que jamais pude
- Belo como Davi, forte como Golias...

E neste curto instante em que me exalto
de tudo o que não sou, gozo o que invejo,
E nunca o sonho humano assim subiu tão alto
Nem flamejou mais bela a chama do desejo.

E tudo isso me vem em vós, Mãe Natureza!
Vós que cicatrizais minha velha ferida ...
Vós que me dais o grande exemplo de beleza
E me dais o divino apetite da vida.

Clavadel, 1914

Mário Quintana, "Poema".

O grilo procura
no escuro
o mais puro diamante perdido.

O grilo
com as suas frágeis britadeiras de vidro
perfura

as implacáveis solidões noturnas.

E se o que tanto busca só existe
em tua limpida loucura
- que importa? -

isso
exatamente isso
é o teu diamante mais puro!

João Batista da Costa, "Litoral"

Antonio Cicero, "Como não te perderia ..."

Como não te perderia
se te amei perdidamente
se em teus lábios eu sorvia
néctar quando sorrias
se quando estavas presente
era eu que não me achava
e quando tu não estavas
eu também ficava ausente
se eras minha fantasia
elevada a poesia
se nasceste em meu poente
como não te perderia

Darcy Ribeiro






















"Pressago"

O presságio aí está, negro presságio.
A falar-me, silente, de dores por doer
Mais doídas que todas as dores já doídas.
A dor, talvez, de nunca mais doer.

Não são dores da carne. Não só.
Nem serão dores maiores, estertórias.
São dores da alma minha, balindo, trêmula.
Dores que, antes de doer, já me doem aqui, agora.

Que resta nesta vida por doer-me?
Já não doí minhas dores todas?
E a roda da dor, acaso, pára um dia?
Em que homem vivo, cansada, ela parou?

Esse temor pressago que me assalta
É o de perder o último, derradeiro, bem que tenho:
A vida aninhada no meu corpo,
Com o prodígio de gozar e de sofrer.

Que é o que temo, eu que nada temo?
A solidão, talvez, de uma eternidade fútil, inútil?
Qual! O que me arrasa é o terror pânico
De não mais ser, nem estar, jamais aí.

Vocês todos vivendo, seus f.d.p., só eu não.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Bach, Erbarme Dich, Ária da Paixão Segundo São Matheus, com Julia Hamari



Erbarme dich, (Tem piedade,)


Mein Gott, um meiner Zähren willen! (meu Deus, das minhas lágrimas)

Schaue hier, (Olha aqui)

Herz und Auge weint vor dir (Coração e olhos choram por ti)

Bitterlich (Amargamente)

Xilogravura de Axel Leskoschek, "Mulher"


Nelson Ascher











"Elegiazinha"
                                                [i. m. nikita (gata da Inês)]

Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

domingo, 8 de novembro de 2009

Mario Zanini, "Casario"

Egito Gonçalves, "Com Palavras".

Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.

As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.

Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar...

Vasco Graça Moura, "Poema".

Silenciosamente aproximo-me do poema
circundo-o duma palavra       faço nela
uma incisão deliberada

e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique

De resina       ainda com gosto a papel húmido
o poema cresce      ramifica-se
comovidamente do cerne para a casca
inteiro       liso      adstringente       sinuoso

Mas
todo poema é perfeitamente impuro

Di Cavalcanti, "Ivete e o Cavalo"

Paulo Henriques Britto, "Trompe l'Oeil"

Os fracassos todos de uma existência,
quando cuidadosamente empilhados,
observada uma certa coerência,
parecem uma espécie de pirâmide
monumental — ainda que truncada,

talvez — desde que olhados à distância
no momento preciso em que os atinge
o sol do entardecer, formando um ângulo
cujo valor exato se obtém
com base no... mas não, é mais esfinge

que pirâmide, sim, pensando bem —
quer dizer, uma esfinge estilizada,
sugerida apenas, como convém
a um monumento, ou cenotáfio*, ao nada.

cenotáfio - memorial fúnebre.

Fernando Grade














"Cotidiano Bichoso"

                                        (Um menino de 18 meses foi encontrado a
                                        vaguear nas ruas da Mouraria - Dos jornais)

Perdeu-se na cidade sua,
onde tinha nascido às sete da manhã
de um dia qualquer da ditadura.

Tinha a rosa dos cabelos por limpar
e talvez por abrir (vamos lá com Deus),
fora a camisa rota no pescoço
e o rabo ao léu.

Pouco se sabe do mais que a vida trouxe
a sua carne, em embrião (coitada !),
apenas a tristeza no olhar
acusava todos nós de uma só vez.

Ah, é verdade,
coisa patriótica:
a criança já falava português.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Manuel Bandeira, "Canção do Suicida"

Não me matarei, meus amigos.
Não o farei, possivelmente.
Mas que tenho vontade, tenho.
Tenho, e, muito curiosamente,

Com um tiro. Um tiro no ouvido,
Vingança contra a condição
Humana, ai de nós! sobre-humana
De ser dotado de razão.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

DASIMAIA

Com corpo
a gente tem fome

Com corpo
a gente mente

Não zombe
não censure

de novo
por eu ter um corpo.

Tenha um corpo
você mesmo
uma vez
como eu
e veja o que acontece.

Ó Senhor.

Poetas-Santos de Xiva (Séculos X - XII)
Tradução Décio Pignatari